“Valentina quer falar” (ou o vexame de pais e mães nas aulas online)

Imagine uma sala de aula normal, presencial. Com lousa, cadeiras, alunos e professora dando aula. A “tia” tem um cronograma, conteúdo pra passar e tenta a (delicada) concentração de 25 crianças. De repente, o milagre do silêncio acontece e a explicação sobre adjetivos vai muito bem até que uma voz surge, lá do fundo da sala: “professora, Valentina quer falar!”. Sim, é o papai de Valentina que, sentado na cadeirinha ao lado da filha, interrompe a aula para a pequena bênção perguntar quantos minutos ainda faltam para o intervalo. “Dez, meu amorzinho, dez minutinhos”, responde a professora munida de diminutivos disfarçativos, pois já havia explicado a Valentina, várias vezes, que, na hora certa, o sinal iria tocar.

Como a aula já havia sido interrompida, a mãe de Enzo – que entrou na sala, rapidinho, só pra trazer a garrafa de água do filho – aproveita pra tirar uma dúvida: “professora, você recebeu o trabalho que Enzo mandou na semana passada?”. A essa altura, evidentemente, Arthur e Miguel já estão em pé, Laura e Sophia discutem por alguma coisa e Guilherme descasca a tangerina que a avó dele aproveitou pra entregar, numa entradinha rápida que quase ninguém percebeu. Só Lucas e Joaquim que sentiram fome imediatamente e agora tiram seus lanches da mochila. O suco de Joaquim derramou, então “tia, ajuda aquiiiii”. A explicação dos adjetivos vai ficar para a próxima aula, claro. Inclusive porque a professora continua tentando achar o trabalho de Enzo já que a mãe dele está esperando, precisa ser atendida e dane-se o coletivo de alunos, AKA turma.

Impossível, impensável, surreal? Eu também achava até março, quando começaram as aulas online. É que mesmo virtual, sala de aula é sala de aula. Real, oficial. Já tem seis meses que é assim, mas as famílias dos presentinhos de Deus não entenderam ainda não. Tá mais fácil meu filho de nove anos acordar cedo e estudar das oito ao meio dia, sem reclamar, do que pais e mães perceberem que aquele é o lugar e momento de professores/as e alunos/as. Só deles. E que não temos o direito de interferir, interromper, atuar.

A não ser que um problema técnico mais sério precise ser resolvido (tipo caiu a internet, tá ligado?), a criança precisa estar ali sozinha, do mesmo jeitinho que fica nas aulas presenciais. Acha que Laurinha deve estar mais engajada? Mamãe conversa com ela depois da aula. Discorda do método? A escola, com certeza, disponibiliza canais específicos para mães e pais. Precisa falar alguma coisa “urgente” com a criança? Faz um sinalzinho pra ela desligar o microfone e jamais vá para a frente da câmera. Acha que a professora “ignorou” seu/sua filho/a? Fortaleça a sua criança para se colocar melhor da próxima vez e, sobretudo, não alimente paranóias e complexos de rejeição: a oscilação do sinal de internet é apenas um dos desafios do “novo normal”. Há delays, atrasos, falhas. Não é hora de convocar a sua própria criança interna rejeitada para a vingança. Cada um na sua terapia, combinado?

Eu já me perguntei “por que a professora não dá limite a esse povo, gente?”. Não dá, não deu nem dará. O selascômetro da pandemia apita fortíssimo quando chega perto de qualquer professor. Estão estressados, sobrecarregados e mortos de medo da onda de demissões. É ruim de discutir com pai e mãe de aluno, uma raça cheia de melindres, exigências e que adora fazer cara de patrão. Eu faço parte dessa raça, mas tento entender a problemática e aliviar para o outro lado. Não é sempre que consigo, claro, mas um pouco de desconfiômetro já é meio caminho andado. Pelo menos, nunca liguei pra coordenação (né, Lu?) “denunciando” professora porque, em determinada aula, em minha opinião, meu potinho de amor foi pouco prestigiado. Aprendi em terapia e ensino a ele: isso também faz parte. Sem dramas, sigamos.

Lembram daquele bordão “tô pagaaaaanoooo”? Pois, esse é um conceito que muitas famílias aplicam também quando o produto é educação formal. Só que aí o buraco é bem mais embaixo. A escola não é uma bolsa, um carro, um sapato. Estamos pagando, claro. Inclusive, a rede pública também não é “de graça”. Sim, devemos (podemos, queremos) exigir qualidade. Mas a cansada palavra “discernimento” se aplica perfeitamente aos instrumentos que precisamos usar ao lidar com os espaços (ainda que virtuais) onde nossos filhos também estão sendo educados. Pais e mães interferindo nas aulas são equivalentes ao “tiozão do churrasco”, sabe? Péssimos exemplos para as crianças de casa. “Tá paganoooo” é mico, vexame brabo. Ainda por cima, isso prejudica a imagem dos filhos, tadinhos, que, por tabela, serão, também, antipatizados.

Professores e professoras nunca foram tão severamente avaliados. Pelos colégios, pelos alunos e dentro de cada lar doce lar onde entram dizendo “bom dia, crianças”, mas são também escutados por pais, mães, irmãos, tios, avós e talvez até vizinhos do apartamento ao lado. Disso eu gosto, não vou negar. É legal saber como meu filho é tratado. Já tenho, inclusive, meus professores preferidos, aqueles que defenderei, se for necessário. Evidentemente, porque escuto, quietinha, quase todas as aulas.

Observo erros, acertos, carinhos, paciências ou a ausência de empatia que também rola pois somos todos humanos e eu não conheço nenhum beato encarnado. Às vezes, me irrito, mas também tenho a consciência de que erro muitas vezes (inclusive em português, meu instrumento de trabalho), assim como as mães dos Enzos, Valentinas, Guilhermes e Lauras. Segue o baba. A mãe de Leo também faz bobagens porque, né, não tá fácil. Mas não precisa ser ladeira a baixo.

Podemos sempre tentar fazer melhor a nossa parte, sobretudo quando passamos por grandes mudanças que trazem novas oportunidades. É o caso. Segurança, autoestima, tudo isso também se trabalha em casa, inclusive observando a postura social dos nossos filhos e filhas nas aulas online. Tem pano pra manga, assunto pra muito papo nessa nova rotina. Eu e Leo temos conversado. Tenho pensado sobre ele, mas também sobre mim. Aproveito pra rever meus conceitos de respeito, limite, poder e liberdade, por exemplo, em uma realidade onde nunca foram testados.

Sim, eu gosto desse desafio. Mas já seria suficiente manter o foco em apenas não atrapalhar o processo. Esse já é um grande passo. Ou seja, se você é responsável pela vida escolar de alguém que está no ensino infantil ou fundamental, pelo menos respire e se controle. Com boa vontade, vamos todos achar nossos novos lugares. Mesmo que essa não seja uma tarefa tão fácil quanto os lindos e livres desenhos das aulas de arte.