Vai dar merda

O secretário de saúde do estado da Bahia disse que estão sobrando testes de coronavírus no Lacem. SOBRANDO, ou seja, não estão usando aqueles testes que, no início da pandemia, eram disputados a tapas. Desinteressaram. Os municípios não querem saber desse assunto de covid mais. Cansaram. Os números registrados estão baixíssimos, em alguns municípios os casos ativos “zeraram”. Claramente, decretaram o fim da pandemia nos interiores dessa terra festiva onde agora se unem todas as colorações partidárias na pauta comum de levar o povo para as ruas, segurando bandeiras e gritando “o meu é melhor, o seu não vale nada”.

(Muitas vezes, trabalhando de graça. Alfabetização plena, que falta faz!)

O povo briga por eles (sim, quase se matam), mas candidatos estão como unha e carne, juntinhos – os da situação e oposição – nessa micareta fora de época porque precisam demais dos eleitores nas ruas e de visitar as casas porque só nos municípios maiores há alguma imprensa, não há emissoras de televisão, muito menos horário eleitoral gratuito. É nas redes sociais e no corpo a corpo a parada. E nos abraços sem máscara ou de máscara no queixo. Um negócio que, mesmo usando direito, apenas ajuda, mas não impede o contágio e isso sempre foi bem avisado. Agora calcule em nosso sol de Primavera, andando quilômetros e gritando palavras de ordem. Perdigotos em festa. Vai dar merda, claro.

Mas não é “só apenas isso”, que já seria grave. No Litoral Norte, já alugaram uma cacetada de casas, tem fila de carro pra entrar em Praia do Forte. O Réveillon precisa ser histórico, planejam um Verão catártico. Que lindo, também sou da farra. E tinha até planejado um desconfinamento muito bem cuidado, por uns poucos dias, pras bandas de lá, numa casa linda que fica no mato. Mas desisti, evidentemente. Se tem uma coisa que o tempo (quando não passa em vão) ensina é jamais ir com a boiada. Se o gado segue para um lado, eu paro.

(“Olho-os com olhos lassos

Há, nos olhos meus, ironias e cansaços

E cruzo os braços

E nunca vou por ali”)

( Já dizia José Régio em Cântico Negro, leia que beleza.)

Vai dar merda, claro. Já começou a dar. Viu as UTIs pediátricas lotadas, em Salvador? Achou surpreendente? Eu não. Há meses, desconfio de qualquer opinião definitiva sobre um vírus recém-descoberto e nunca acreditei nesse papo de que criança está a salvo. Não apareciam nas estatísticas enquanto contaminadas em menor número porque em casa. Como a doença não trabalha com o conceito de “merecimento”, chegou chegando nas pracinhas e piscinas de prédios que os pequenos voltaram a frequentar. Por aqui, continuo sendo “a turma” do meu filho, por mais que isso seja profundamente desafiador.

(Inclusive porque ainda não consegui mapear um coleguinha que esteja realmente isolado para podermos tentar encontros ao ar livre, de máscara e com o distanciamento físico necessário.)

(É incrível que ainda insistam na volta das aulas presenciais.)

Eu também achei que teria um Verão catártico. Sonhei até com Carnaval. Antes disso, com encontros amorosos de beijos e abraços. Foi bom pensar assim. Mas a realidade é a realidade. Em 46 anos de vida, já entendi que negação não ajuda em nada. Em Paris, já tem toque de recolher, outra vez. Alguns países recuam na reabertura. A morte por covid-19 volta a aparecer em maior número, entre meus amigos próximos, nas redes sociais. “Sinto muito”, volto a escrever. Sinto mesmo. Profundamente. Por cada um que se vai, mas também pela coletividade. Lamento pelo futuro próximo que se anuncia sombrio, na minha estação mais amada.

Não tenho mais o medo irracional do começo. Nem a excitação de “curtir a casa”. Depois de sete meses, é claro que o tédio bate. A solidariedade com aqueles que não podem se isolar sempre esteve presente assim como o desprezo pelos que, mesmo podendo, não o fazem. A burrice me cansa profundamente, também a futilidade. Continuo lendo tudo que chega às minhas mãos sobre essa que é a maior tragédia contemporânea e isso não tira a minha saúde mental. Ao contrário. Se é pra me entorpecer, em vez da ignorância, prefiro um bom vinho ou minha cervejinha gelada.

Daqui, observo essa movimentação sabendo que o vírus mata e não respeita calendários festivos nem eleitorais. Peço a minha bebida por delivery. Escuto do outro lado “ainda precisa?”. Sim, precisa. Agora – com a não notificação – muito mais. Adio meus planos. Fico em casa. Com a certeza mais absoluta de que a excitação coletiva vai cobrar seu preço alto. A cada estouro da boiada, é inevitável pensar: vai dar uma grande merda. Não quero mais convencer ninguém de nada. Apenas observe e em dezembro a gente conversa. Pra mim, está claro.

(“Ain, mas eu não aguento mais”. Só você, né? Tá.)