Salvador viveu guerra entre deuses, orixás e santos durante a última grande pandemia

Na primeira sexta-feira deste mês, a imagem peregrina do Senhor do Bonfim saiu em procissão pelas ruas de Salvador. O cortejo foi um dos acontecimentos mais tocantes neste nosso confinamento, ao recuperar, de forma intencional, períodos outros nos quais a fé foi convocada para serenar angústias.
A imagem já havia descido a Colina Sagrada na grande seca de 1842; na terrível epidemia do cólera de 1855 e também para pedir, em 1942, embora a súplica só tenha surtido efeito três anos depois, o fim da Segunda Guerra Mundial.
Em 2020, quando a comitiva do Bonfim passou pelo Pelourinho houve um encontro marcante com a história. Neste mesmo dia, na porta da Catedral Basílica de Salvador, foi colocada a imagem de São Francisco Xavier. O que pode ser interpretado como um simples aceno de duas figuras poderosas, na verdade, reascende uma rivalidade iniciada há dois séculos.
São Francisco Xavier é, oficialmente, o padroeiro de Salvador. Esta escolha foi feita em 1686, quando a cidade enfrentava uma epidemia de varíola. Nascido na Espanha, Francisco Xavier morreu na China, enviado em uma missão para evangelizar os povos do oriente.
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Relíquia que contém pedaço do osso de São Francisco Xavier e fica na Catedral Basílica de Salvador (Foto: Márcio Shimamoto/Catedral Basílica de Salvador) |
Ele era um jesuíta. Ou seja, pertencente à Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola. Esta mesma companhia foi a primeira a se estabelecer aqui na Bahia, com a missão de catequizar os índios.
Quando a varíola veio, os jesuítas de Salvador recorreram a um dos ex-integrantes seus para pedir proteção. O clamor fazia, sim, muito sentido. Francisco Xavier morreu acometido por uma forte febre na China (muito antes do coronavírus).
Romanização
No entanto, a história de disputa começa somente em 1855. Na última coluna que escrevi aqui neste brioso CORREIO, lembrei das grandes epidemias que Salvador enfrentou e venceu ao longo da história. Uma das mais cruéis foi exatamente a pandemia de cólera-morbus. A estimativa é que 25 mil pessoas tenham perdido a vida nesta província.
Neste período, o arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, Dom Rômulo Antônio de Seixas, iniciou uma ação para recuperar o prestígio do padroeiro e combater o caráter mais festivo e laico do catolicismo na Bahia. Este movimento ficou conhecido como “romanização”, pois a ideia era reformar os modos tropicais seguindo o modelo mais rígido da cúria romana.
Trocando em miúdos, dizia-se que o catolicismo baiano tinha “muita reza e pouca missa. E muito santo e pouco padre”, conforme conta o historiador Onildo Reis David, em dissertação defendida na Ufba, em 1993. A ação do arcebispo era clara contra o candomblé, as Irmandades e as festas de largo, permeadas em laços sincréticos com a Igreja Católica.
Um dos imaculados mais populares e requisitados na época do cólera era São Roque, o santo médico católico, que no candomblé é representado por Omolú-Obaluaê, o orixá da cura e doença.
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Baiana joga pipoca na festa de São Roque e Obaluaê (Foto: Arrison Marinho/CORREIO) |
Usando o clima de medo provocado pela moléstia, Dom Rômulo dizia que a epidemia era fruto da “mão de Deus” contra os pecados humanos. Tentou-se, nesta época, fortalecer o culto a santos que não tivessem relação direta com o axé, como o Sagrado Coração de Jesus e São José.
O arcebispo primaz criou ainda, segundo Onildo Reis, a Irmandade de São Francisco Xavier e distribuiu indulgências (o perdão) para quem participasse dos novenários e festa do santo.
Por conta da enorme quantidade de mortos, muitas irmandades organizaram procissões pela cidade. A primeira delas foi a do Senhor Bom Jesus dos Passos, na Igreja da Ajuda.
Dom Rômulo também preparou a procissão de São Francisco Xavier, trazendo junto a ele a imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, padroeira do Império brasileiro e que gozava de enorme popularidade entre os fiéis.
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Procissão com a imagem do Senhor do Bonfim pelas ruas de Salvador para combater a covid-19 (Foto: Arrison Marinho/CORREIO) |
Mesmo com todo este esforço, o cortejo que ganhou as ruas e teve mais devotos foi o de Senhor do Bonfim, ocorrido em 6 de setembro de 1855.
É preciso aqui um esclarecimento religioso importante. Senhor do Bonfim não é um santo, mas a própria personificação de Cristo morto e ressuscitado. Na relação com o axé, representava a equivalência a Oxalá, criador da terra (aiyê) e do homem.
No museu da Igreja do Bonfim, uma pintura retrata como foi esta procissão. No primeiro plano dá pra ver o andor com a imagem, em um enorme cortejo com estandartes ocupando o largo. Entre os devotos há adultos e crianças. Brancas e negras.
Senhor do Bonfim é a guarda imortal da Bahia.
[Esta crônica é dedicada a Felipe Campos e Marcos Murilo, importantes colaboradores desta coluna].