Relatos pessoais: médicos e profissionais de saúde baianos revelam medos e desafios na batalha contra o coronavírus
O CORREIO separou quatro relatos de profissionais de saúde que vão estar na linha de frente do combate ao coronavírus na Bahia. Eles garantem ter muita disposição para a guerra que está para acontecer, mas também admitem ter medo de um vírus ainda desconhecido e receio das condições de trabalho que o Brasil tem em termos de Equipamentos de Proteção Ambiental (EPIs).
Emergência do Couto Maia tem Karine Ramos como coordenadora (Foto: Divulgação) |
– Karine de Almeida Araújo Ramos (Médica infectologista coordenadora do pronto atendimento adulto do Instituto Couto Maia)
“É um grande desafio. Estamos trabalhando com uma situação que nós não conhecemos muito. Isso gera apreensão, medo. Eu acho que o fato de termos conhecimento do que fazer, de como fazer, dá uma segurança maior. Aqui a gente está preparado, treinado e sabemos que essa é a nossa missão. É um trabalho constante, árduo e toda equipe. Do segurança, ao recepcionista, do auxiliar da higienização à enfermagem e os médicos. O trabalho de todo mundo é importante. E a má execução de um expõe todos os outros.
Eu não tenho medo de ter Covid, o meu receio é levar para casa, para meus filhos e esposo. Então por isso sigo à risca todos os nossos protocolos. Precisamos também cuidar uns dos outros enquanto equipe. Há quem acabe não suportando a pressão nesse momento e a gente tem que apoiar um ao outro”.
Médico do HGE e Rede Particular diz que prognóstico é ruim (Foto: Divulgação) |
– Nelson Moscoso (Médico cirurgião da rede privada e da emergência do Hospital Geral do Estado (HGE))
“Estamos esperando o caos, o clima é de guerra. Estamos com receio do pior, todos muito assustados, o prognóstico é difícil. Temos medo de chegar ao ponto de escolher quem vai ou não para a UTI por falta de vaga. Mesmo assim, a maioria dos profissionais da área de saúde está disposta a enfrentar essa situação que nunca vivenciou! Até porque estes profissionais sabem que são eles que estão na linha de frente da batalha! São eles que podem fazer a diferença na evolução de uma pessoa infectada! De uma mãe, de um pai, de um avô, de uma avó! Porém, não somos super-heróis! Todos estamos receosos com o que realmente vão se deparar.
Todos estão com medo de se infectarem e de infectarem seus familiares! Principalmente porque não encontrarão as condições ideais de trabalho, nem no setor público, nem no setor privado. Há também o medo das jornadas de trabalho intermináveis e super exaustivas devido à grande demanda! Sem falar do fato de esses profissionais serem mal remunerados, principalmente no setor público.
Será um novo e grande desafio para todos! Que isso tudo pelo menos sirva para que todos, em especial os governantes, passem a dar o devido valor a esses profissionais que são essenciais para a vida de qualquer pessoa”.
“Ando angustiada, mas nosso compromisso é com a vida”, diz Maria das Graças (Foto: Divulgação) |
– Maria das Graças Silva Santos (Técnica de enfermagem do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hupes)
“Tenho 34 anos de profissão, mas nunca me vi em uma situação tão complicada. Já passei por diversos momento complicados, atendimentos difíceis, como no incêndio causado pelos fogos de artifício de Santo Antônio de Jesus. Ali trabalhamos de forma dura e intensiva. Só que essa pandemia nos surpreendeu de forma ímpar. É um vírus que pega facilmente! Mas os doentes precisam da gente, da nossa calma e da nossa serenidade. Temos compromisso com a vida! Precisamos também cuidar da gente. Precisamos nos cuidar para cuidar das pessoas. E temos os nossos! Os nossos familiares. É muito difícil como profissional da saúde que cuida sair de casa para trabalhar. Eu tenho uma mãe idosa que está no grupo de risco, tem hipertensão. Ela está há mais de dez dias em casa e só vai sair para tomar a vacina da gripe. Fica sozinha porque sou filha única.
Tenho estado muito angustiada. Venho trabalhar e penso: ‘meu Deus, estou indo pra onde? E se eu me contaminar vai acontecer o que comigo? Tantos profissionais de saúde no mundo já foram acometidos por esse vírus!
Mas aí eu penso: ‘Deus vai fazer com que eu siga em frente’. Tenho procurado me proteger, fazer o que nos foi orientado, usar os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) de forma mais rigorosa. É um trabalho que precisa dedicação e isso nós temos de sobra”.
Intensivista Paulo Bittencourt quer que médicos cuidem de sua segurança e saúde mental (Foto: Divulgação) |
– Paulo Lisboa Bittencourt (Intensivista do Hospital Português)
“Os profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, auxiliares e técnicos de enfermagem – que trabalham em unidades de terapia intensiva (UTI) estão habituados a lidar com situações adversas e com pacientes instáveis com insuficiência respiratória aguda que necessitam de intubação e uso de respiradores. A assistência a esses pacientes muitas vezes requer o uso de equipamentos de proteção individual (EPI) porque frequentemente estes pacientes tem infecções causadas por bactérias multirresistentes e mesmo por superbactérias que causam infecções graves e difíceis de tratar. Alguns destes microorganismos são resistentes inclusive à ação do álcool-gel. Nenhum deles nunca preocupou tanto os profissionais de saúde quanto o SARS-CoV2 e isto não ocorreu apenas pela dimensão da pandemia da COVID-19 ou pela sua gravidade. Sabe-se que apenas 20% dos pacientes terão sintomas que requeiram hospitalização e que apenas 5% precisarão de cuidados intensivos, geralmente idosos com comorbidades. A mortalidade global da COVID-19 é apenas 3%-8%, bem aquém daquela observada na UTI em pessoas com sepse e choque séptico.
O que assustou as pessoas que trabalham nas UTIs foi a velocidade e alta taxa de transmissibilidade do vírus, capaz de levar a um colapso no sistema de saúde com impacto na assistência. Isso pode ocorrer por falta de leitos hospitalares e escassez de recursos pela falta de insumos (EPIs) e equipamentos (respiradores) devido à demanda potencialmente crescente de indivíduos infectados. Ela pode levar a aumento do risco de contaminação dos profissionais de saúde por sobrecarga de trabalho e uso inadequado de EPIs como ocorreu em vários outros países.
O fato de muitos infectados serem assintomáticos cria uma preocupação adicional por podermos transmitir a doença para nossos familiares e amigos de forma não intencional, o que acaba levando a uma dualidade importante no comportamento da população que ora nos aplaude como heróis ora nos evita ou mesmo agride como possíveis hospedeiros do vírus potencialmente mortal. Evidentemente que isto leva à sensação de angústia e medo, potencializados pela desinformação e pela epidemia nociva de notícias falsas alarmantes que todo o dia circulam nas redes sociais. Muito nos preocupa o desabastecimento pelo uso indevido e inadequado de álcool gel, máscaras, luvas e outros insumos hospitalares pela população em pânico que pode levar a prejuízo a assistência aos pacientes mais graves. Muito nos assusta a especulação financeira relacionada ao comercio abusivo desses itens tão preciosos para nós profissionais de saúde e a minimização do problema por muitos formadores de opinião e autoridades públicas. Sabemos que uma epidemia como esta, associada a confinamento e isolamento social, pode revelar o melhor ou o pior de cada um de nós. A maior parte das UTIs brasileiras está compartilhando experiências e ensinamentos provenientes das UTIs da Europa e China. Estamos tentando trazer o melhor que podermos. Estamos cientes do enorme desafio para o enfrentamento da COVID-19, mas precisamos de condições adequadas de trabalho no que se refere a recursos, segurança e principalmente saúde mental. Vamos enfrentar todos juntos a COVID-19, sabendo que cada um de nós tem a responsabilidade de fazer a sua parte, de fazer a coisa certa.