'Pessoas negras têm vivido vida utilitarista porque gerações atrás éramos mercadoria'

Ao lado de mães que perderam filhos para a violência policial, Caroline Amanda construiu uma trajetória de luta contra o genocídio de pessoas negras. As tristes histórias que ela acompanhava, no entanto, trouxeram angústias pesadas que foram somatizadas pelo corpo e a saída foi buscar práticas integrativas. Mestranda em Filosofia pela UFRJ, fundadora da plataforma Yoni das Pretas e terapeuta menstrual, ela foi a convidada desta sexta-feira (16) do programa Conexões Negras, do Jornal CORREIO, no qual falou sobre autocuidado a partir de uma lógica ancestral e decolonial.

A pesquisadora contou que, infelizmente, quase a totalidade das pessoas menstruantes que a procuram para tratamento terapêutico chegam com alguma dor, em geral causada por miomas, ovários policísticos. Caroline ressaltou que é importante encontrar “um tempo para [cuidar do] corpo sem que ele precise gritar”. 

A terapeuta citou histórias com as quais lida diariamente, como de algumas pessoas que costumam buscá-la para evitar sentir dor ou contrair doenças em véspera de provas importantes ou quando acabam de conseguir um emprego, por exemplo. Caroline avalia que esse comportamento sinaliza como os corpos às vezes existem para servir, seja à academia, ao trabalho e até mesmo ao relacionamento com parceiros afetivos. 

“Então, ela não me procura para fazer um tratamento porque ela precisa experimentar o mundo sem dor, mas porque ela precisa servir melhor. Isso já é um dado de como você enxerga o próprio corpo. Ser mais produtiva, para quem? Quem é que se cuida para ser mais produtiva, para servir com excelência? Certamente não são pessoas brancas. Elas não estão se organizando para servir, elas estão se organizando para viver”, analisa. 

E, nesta ótica utilitarista em relação ao corpo, a população negra deixa de se colocar em primeiro plano. “Todas as pessoas negras têm vivido uma vida utilitarista porque há gerações atrás nós éramos mercadoria. A virada é reprogramar esse corpo para mostrar que ‘não, não sou mercadoria e estou aqui para viver bem’”, continua ela. 

Ainda numa perspectiva racializada do autocuidado, ela lembrou que pessoas negras foram forçadamente trazidas ao Brasil por volta de 1550, e que antes da existência do Sistema Único de Saúde (SUS), estas populações praticavam tecnologias ancestrais de cura. “Como foi que sobrevivemos de 1500 para cá? Muita tecnologia veio guardada em nossos corpos porque viemos para cá sem nenhum livro”, pontuou.

A pesquisadora ainda discutiu sobre questões-problema em relacionamentos interraciais, misoginias e racismos tais como quando homens chegam a manifestar estranhamento quanto a pelos pubianos crespos ou quando vaginas e seios rosados são supervalorizados, ao passo que mulheres negras retintas raramente recebem sexo oral.

O problema da naturalização da dor na vida das mulheres também foi abordada como uma marca da lógica ocidental, difundida, inclusive, a partir da Bíblia, na figura de Eva que cravou o ser mulher como disseminador do mal no mundo. “Eva comeu a maçã e a humanidade sofre por causa dela. Quem vai tirar [essa ideia]? Dor e mulher são complementares nessa lógica ocidental, que precisa ser desconstruída, decolonizada”, disse.