Pela primeira vez na história, Festa da Boa Morte não acontecerá

Thainá Dayube

Fosse em outros anos, as irmãs da Irmandade da Boa Morte finalizariam os detalhes para a Festa da Boa Morte, que, entre os dia 13 de 17 de agosto, enche as ruas de Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Algumas delas estariam na sede da confraria, no Largo D’Ajuda, a arrumar as imagens de Nossa Senhora da Boa Morte e da Glória para a celebração dos 200 anos da presença delas na cidade. Mas, justamente no bicentenário, o festejo não acontecerá. Haverá apenas uma missa online, no próximo dia 16, devido à pandemia.

É a primeira vez que se tenha registro em que as irmãs – todas elas mulheres negras – não homenagearão, em missas, ceias, sambas e procissões a Nossa Senhora da Boa Morte e Glória, títulos atribuídos a Nossa Senhora pela tradição católica. Até o mês de julho, a missa sequer aconteceria e a Festa da Boa Morte passaria sem qualquer registro na História. O pároco da Igreja Matriz de Cachoeira, Heitor Vilas Boas, foi quem iniciou as conversas com as irmãs para combinar o ritual. Ficou decidido que a cerimônia será transmitida, às 9h, no canal do Youtube da Paróquia.

“A gente espera fazer uma homenagem a essas irmãs, pois não há nenhuma outra opção”, disse. 

Como são todas idosas, do grupo de risco para a covid-19, as irmãs não participarão da missa. “Não será uma Festa da Boa Morte, porque sem nós, não há como isso acontecer”, afirmou Mãe Zelita, 77 anos, representante da irmandade.

As imagens santas de Nossa Senhora da Boa Morte e da Glória também não serão levadas, em cortejo, à Igreja Matriz, como ocorre anualmente. Ficarão guardadas no último andar da Casa da Irmandade, de onde são retiradas somente nesta época do ano, para ser saudadas.   

A Nossa Senhora da Boa Morte, para os católicos, é a representação da “dormição” (morte) de Maria, a quem os fiéis rogam pela salvação. A segunda simboliza a glória da santa, na sua passagem da vida terra para a celestial. A Festa da Boa Morte também é um símbolo da resistência de mulheres negras, livres e independentes.  

“Seria até uma grande ignorância pensar em algo diferente. Se não for para ser completa, não tem Boa Morte. Ninguém da irmandade tem mais 15 anos [risos]. A gente sabia disso desde o início de todos esses problemas”, contou Mãe Zelita.

A missa será seguida de uma apresentação online do grupo Jeje Nagô, em homenagem à Irmandade, revelou Jomar Lima, assessor da confraria. Também há expectativa de que seja possível gravar imagens de orações de parte das irmãs, entre os dias 14 e 15, e veicular os vídeos.

“São mulheres mais velhas, muitas vezes com limitações de tecnologia, vamos tentar fazer com que isso aconteça da melhor formar”, disse.

Ainda assim, não será a Boa Morte de sempre. 

Substituições

O último domingo de julho de cada ano é dia de eleger quatro irmãs com a função de administrar a festa. Na primeira semana de agosto, elas saem às ruas para arrecadar esmolas que ajudarão a produzir a festa. Neste ano, nada disso aconteceu. A essa altura, as irmãs vindas de outras cidades – como Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo – já estariam em Cachoeira, reunidas nos últimos preparativos.

Às 18h30 do dia 13, aconteceria uma missa dentro da própria sede, seguida de uma ceia servida para a comunidade em geral. Depois, as portas se fechariam para o público, e no dia 14, teria início, como sempre, o novo momento da celebração, quando as irmãs carregam até a Igreja Matriz a Imagem de Nossa Senhora da Boa Morte.

O ápice da apresentação seria no dia seguinte quando é celebrada Nossa Senhora da Glória – ascensão de Maria ao céu, conforme a crença -, com procissão diurna e feijoada servida pelas irmãs. 

Não há nenhum roteiro religioso criado pelas irmãs para os dias em que deveriam estar, juntas, no momento de celebração. Mãe Zilda, iniciada na confraria nos ano 80, contou que “sente muito” pelo cancelamento da Festa. “Além da saudade das irmãs, é quando nos reunimos, conversamos, é aquela alegria”, afirmou.

“Mas, a santa sabe que momento estamos vivendo e cada uma de nós pode rezar o que aprendeu, adorar, e pedir que isso passe. Ela está curvada orando por nós e sabe dos nossos esforços”, completou. 

Do dia 16 ao 17, finalizadas as celebrações religiosas, aconteceriam sambas e seriam servidos, nos respectivos dias, caruru e cozido, explicou Jomar, assessor da Irmandade. É a tradição, A festa no Largo D’Ajuda segue até a noite.

Celebração muda ao longo dos dias (Foto: Thainá Dayube/Arquivo CORREIO)

Nesses dois dias, vestidas com bata rendada e saia colorida, as irmãs relembram a liberdade alçada pelo povo negro, relatou Magnair Barbosa, historiadora responsável pelo dossiê que, em 2010, levou ao tombamento da Festa da Boa Morte como bem imaterial baiano pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado (Ipac).

Os dias de celebração são, também, igualmente importantes para Cachoeira – culturalmente, mas também economicamente. 

Ponto alto na cidade

A Festa da Boa Morte é, para Cachoeira, o “símbolo-mor da pluralidade do município e o melhor momento no que tange a promoção do turismo étnico-afro-cultural”, classificou o secretário municipal de Cultura e Turismo, Cleydson do Rosário. Ele afirmou que a cidade não possui estatísticas de quanto, economicamente, a festa circula economicamente na cidade.

“Lhe garanto com muita precisão que é um volume considerável. É mais um impacto, muito grande, devido à pandemia”, disse. 

Os turistas, nacionais e internacionais, começam a chegar na semana da Festa. Mas mesmo antes, em julho, e depois, em setembro, é possível perceber a presença de visitantes interessados na história das mulheres da Boa Morte. Circulam, nos cinco dias dos festejos, de cinco a sete mil pessoas atraídas pela tradição que desembarcou na cidade em 1820.  

Festa da Boa Morte atrai milhares de turistas (Foto: Thainá Dayube/Arquivo CORREIO)

A Irmandade chegou a Cachoeira naquele ano, saída de Salvador, onde surgiu, na Igreja da Barroquinha, numa data desconhecida pelos historiadores e antropólogos. Numa época escravocrata, que negava aos negros, e ainda mais às mulheres, quaisquer direitos básicos, uma irmandade como a da Boa Morte, “era núcleo complexo de resistência e solidariedade das mais diversas ordens, alianças sociais, mas também religiosa”, no entendimento da historiadora Magnair. 

Desde o surgimento, a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte exerceu, como enumera a historiadora, papel fundamental nas compras de alforria de negros escravizados, em formação de alianças para abertura e funcionamento de Casas de culto afro-brasileiro e, sobretudo, na ascensão social da mulher negra. Mesmo sem a festa neste ano, é a mensagem da luta, resistência e ressignificação que essas mulheres querem deixar, mais uma vez.

SERVIÇO

O quê: Missa em homenagem a Nossa Senhora da Boa Morte e Glória

Onde: https://www.youtube.com/channel/UCm8V69y34D1hsGB3lEEprjg
Quando: 16 de agosto (domingo), às 9h