O surto da violência doméstica na pandemia

Como se já não bastasse o cenário de grave crise sanitária, a pandemia do novo coronavírus provocou também uma explosão de casos de violência contra a mulher e colocou em xeque as nossas políticas de proteção ao público feminino. Se, por um lado, o isolamento social se mostrou uma ferramenta poderosa contra a disseminação do vírus, por outro, expôs que ainda temos um caminho longo a percorrer no combate à violência doméstica. 

Os números registrados durante a pandemia são alarmantes e preocupantes, especialmente porque sabemos que, em se tratando de violência doméstica, ainda temos muita subnotificação. Em outras palavras, ainda há muitas mulheres que sofrem com agressões, físicas, verbais ou psicológicas, por exemplo, e temem denunciar os agressores, por motivos diversos – medo, sentimento de impunidade, dependência financeira, dentre inúmeros outros. 

Dados do governo federal divulgados recentemente apontam que o número de denúncias de violência contra a mulher recebidas no canal 180 aumentaram cerca de 40% somente no mês de abril, ainda no início da pandemia. No país, os casos de feminicídio cresceram 22% em 12 estados entre março e abril. 

Na Bahia, também houve aumento nos feminicídios, segundo dados da própria Secretaria da Segurança Pública do Estado. Somente em maio, o crescimento foi de 150% em relação ao mesmo mês do ano passado – saiu de 6 para 15 mortes. 

Os dados trouxeram à tona um debate necessário e urgente: nossas políticas públicas de proteção às mulheres ainda são frágeis e precisam ser reforçadas, sob pena de continuarmos a ver os números aumentarem ano após ano. 

Especificamente na Bahia, temos ainda um longo caminho pela frente. O Anuário da Segurança Pública aponta que, em 2017, a Bahia foi o segundo estado com maior número de homicídios de mulheres, com 474 casos. Além disso, temos apenas 15 delegacias especiais de atendimento à mulher (Deams) num estado de grande extensão territorial, com 417 municípios. 

Na minha gestão na Secretaria da Segurança Pública do Estado (SSP), construí as duas Deams de Salvador, e elas acabaram se tornando locais de acolhimento das vítimas, com atendimento psicossocial, terapia familiar, individual e em grupo e acompanhamento jurídico, servindo de modelo para várias capitais. Quando estive à frente da SSP, em parceria com as Voluntárias Sociais, instalamos a Pousada de Maria, em 2000, casa de acolhimento das mulheres e seus filhos em situação de violência, sendo pioneira no Brasil, muito antes da Lei Maria da Penha. 

Além disso, sou ‘madrinha’, por ter ajudado na sua implantação, da casa de passagem Irmã Dulce, da Prefeitura de Salvador, que recebe mulheres e crianças nesta condição de violência. 

Então, este é assunto que não apenas domino como acompanho de perto e, por isso, defendo, por um lado, que é necessário ampliar as Deams pelo interior do estado, onde a subnotificação tende a ser ainda maior, e, por outro, que as políticas de conscientização e apoio às mulheres sejam intensificadas. A pandemia acendeu o alerta, cabe a nós ignorá-lo ou agir para evitar as mulheres continuem sendo vítimas.

* Delegada da Polícia Civil, ex-secretária estadual da Segurança Pública e ex-vereadora