Não há evidências que liguem morte de menina alemã ao uso de máscaras

  • Conteúdo verificado: Postagens dizem que o uso de máscaras foi posto em xeque na Alemanha após garota de 13 anos morrer em ônibus escolar

São enganosas as postagens que afirmam que o uso de máscaras de proteção facial contra a covid-19 foi colocado em xeque na Alemanha. O questionamento contra o equipamento de proteção foi feito somente por uma deputada da extrema-direita que insufla boatos sobre a morte de uma estudante de 13 anos num ônibus escolar. Ela foi censurada por um líder de seu partido, uma vez que a relação entre o óbito e o uso da máscara não foi feita nem por autoridades nem pela imprensa local.

O caso ocorreu na cidade de Germersheim, no estado da Renânia-Palatinado, sudoeste da Alemanha, em 7 de setembro. A garota desmaiou dentro de um ônibus escolar, foi socorrida e morreu no hospital. A notícia foi publicada nos sites de pelo menos quatro jornais que cobrem a região onde o incidente aconteceu. Nenhum deles menciona a suposta influência da máscara.

Apesar disso, o posicionamento da parlamentar foi suficiente para incentivar que blogs replicassem a interpretação equivocada do incidente, incluindo em outros países. Na França, um deles publicou um texto com o título “Trágico: uma estudante de 13 anos teria morrido na Alemanha por causa da obrigatoriedade do uso de máscara”. Uma versão muito semelhante a este texto repercutiu em sites brasileiros, como o Conexão Política e o Terça Livre – que cita o conteúdo do primeiro.

Ao Comprova, o Conexão Política disse que “a matéria gira em torno do questionamento feito pela parlamentar alemã”. Ressalta que seu texto não traz nenhuma “conclusão ou afirmação a respeito do caso concreto” e que “a morte ainda está sendo investigada”.

Como verificamos?
O Comprova buscou pelos três jornais alemães citados pelo site Conexão Política como sendo fontes da publicação.

Em seguida, a verificação procurou pelos órgãos oficiais citados nas publicações originais: o departamento de Polícia de Renânia-Palatinado, o Ministério Público de Karlsruhe – responsável pela investigação das causas da morte –, a Brigada Voluntária de Bombeiros de Büchelberg – que prestou apoio aos 32 estudantes que também estavam no ônibus – e a DRK, a Cruz Vermelha alemã, que socorreu a garota até o hospital.

Foram procurados pelo Comprova também a deputada Birgit Malsack-Winkemann, que insinuou que a garota teria morrido por causa do uso da máscara, e o partido ao qual ela é filiada, a Alternativa para a Alemanha (AfD).

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 22 de setembro de 2020.

Verificação
A causa da morte ainda não foi definida

No texto em que dá destaque ao boato propagado pela deputada alemã, o Conexão Política cita três jornais como fontes de suas informações. O Comprova encontrou as publicações sobre o assunto feitas pelo Die Neue Welle, pelo Die Rheinpfalz e pelo Allgemeine Zeitung, todas publicadas entre 7 e 9 de setembro deste ano.

O site brasileiro usa informações dos sites alemães sobre a ocorrência e as investigações, mas em nenhum desses veículos há qualquer menção ao uso de máscara ou à suspeita de que a criança pudesse ter morrido por fazer uso do acessório. Os sites também não mencionam que o uso obrigatório de máscaras esteja sendo questionado no país.

Segundo a imprensa alemã, a causa da morte da menina está sendo investigada pelo Ministério Público de Landau, onde ela morava. Inicialmente, o caso ficou a cargo do Ministério Público de Karlsruhe, onde fica o hospital para onde a garota foi levada e acabou morrendo.

No dia 9 de setembro, o Die Neue Welle informou que a promotoria aguardava o resultado da autópsia para uma semana, no mínimo. O resultado ainda não foi publicado no site do escritório da promotoria. O jornalista Ralf Wittenmeier, editor do Die Rheinpfalz, jornal que primeiro noticiou o caso, disse ao Comprova por e-mail que o resultado da autópsia foi inconclusivo. Depois disso, o caso passou à promotoria de Landau, que pediu mais exames. Estes resultados, segundo Wittenmeier, podem levar semanas.

Por e-mail, o chefe da assessoria de imprensa da sede da polícia do estado da Renânia-Palatinado, Thorsten Mischler, divulgou apenas as informações preliminares da ocorrência – e ela não cita máscara ou qualquer outra possível causa: “Na tarde de 7 de setembro de 2020, por volta das 13h45, houve uma emergência médica em um ônibus escolar perto de Wörth. Uma menina precisava de atendimento médico e foi levada a um hospital. A menina morreu no hospital”, diz a nota oficial.

O Comprova entrou em contato com jornalistas na Alemanha e constatou que esse comunicado não chegou a ser publicado na plataforma utilizada para comunicados de imprensa da polícia, embora a informação tenha sido confirmada a jornais locais. Isso porque não é comum que a polícia publique comunicados sobre casos em que não há indício de crime.

A Brigada de Incêndio de Büchelberg, que também esteve no local, postou em sua página no Facebook uma foto do local da ocorrência, informando que a equipe esteve lá junto com a polícia e a DRK cuidando de 32 pessoas após uma emergência médica. O Comprova questionou a Brigada sobre a presença de máscara na garota, pelo Facebook, mas a equipe respondeu que não teve contato com a menina, apenas com os demais estudantes que estavam no ônibus.

A DRK foi procurada para falar sobre possíveis causas para a morte, mas também respondeu, por e-mail, que não tem mais informações sobre o caso.

Como surgiu a relação da morte com o uso de máscaras
No dia seguinte à morte da estudante, a deputada Birgit Malsack-Winkemann, filiada ao partido AfD, publicou em sua conta no Facebook uma fotografia de uma criança usando máscara e com a seguinte legenda: “A culpa foi da máscara? Aluna de 13 anos desmaiou no ônibus escolar na segunda-feira ao meio-dia e faleceu pouco tempo depois. Acabou com a loucura! Pelo menos poupe as crianças, pois elas não conseguem resistir!”. O que não aparece na legenda, mas está escrito sobre a imagem da postagem é outra insinuação: “Primeira vítima de morte por máscara? Quando será a autópsia?”.

No mesmo dia da postagem feita pela deputada, o primeiro jornal a noticiar a morte da garota, o Die Rheinpfalz, publicou um artigo criticando a relação feita entre a morte da garota e o uso de máscaras. O editor Ralf Wittenmeier, que tem 52 anos e está no jornal desde 1999, não cita diretamente a postagem da parlamentar, mas os comentários feitos por leitores do jornal.

“Negacionistas do uso de máscaras, fanáticos por conspiração e outros pensadores inovadores adorariam ver que usar a máscara foi uma das razões pelas quais uma garota de 13 anos morreu. Essas pessoas e aqueles que compartilham seus argumentos on-line não têm decência”, escreve Wittenmeier.

No dia 11 de setembro, um outro jornal alemão, o t-online, publicou um artigo sobre a repercussão da postagem da deputada. No texto “Política da AfD instrumentaliza criança morta para lutar contra máscaras”, Lars Wienand, responsável por verificar a autenticidade de informações no veículo, afirma que não há menções a uma relação entre o uso de máscaras e a morte da menina por nenhuma das autoridades que prestaram o socorro. O artigo diz ainda que a promotoria vem evitando falar com jornalistas e que apenas a família da menina tem o direito de conhecer a causa da morte.

Uso de máscara é obrigatório na Alemanha
Desde abril deste ano, ainda nos primeiros meses de pandemia, a Alemanha tornou obrigatório o uso de máscaras no país. Em julho, o secretário estadual da Economia do estado de Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental, Harry Glawe, afirmou que não via necessidade de manter a obrigatoriedade da máscara em lojas. A chanceler Angela Merkel defendeu a permanência da obrigatoriedade e o Ministério da Saúde e secretários estaduais mantiveram o uso obrigatório.

Em agosto, o governo de Merkel negociava multa de pelo menos 50 euros para quem desrespeitasse a regra, segundo noticiou o portal G1.

Quem é Birgit Malsack-Winkemann
Birgit Malsack-Winkemann foi eleita para o Bundestag, o parlamento alemão, em 2017. Em seu site, ela afirma que escolheu o partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD) por rejeitar “fundamentalmente” a política europeia. “Eu estava firmemente convicta de que era a forma errada de forçar Estados com condições tão diferentes a um sistema econômico tão estreito e, além disso, com uma moeda única, o euro”, explica.

Na postagem feita pela deputada no Facebook sobre a morte da estudante, o líder do partido AfD no estado de Renânia-Palatinado, Uwe Junge, repudiou a insinuação. Ele escreveu nos comentários: “Vergonha alheia! A esse nível não devemos fazer política. Por favor, peça desculpas e exclua!”. O comentário foi feito no dia 8 de setembro, às 18h12. A postagem não foi excluída.

No dia 14 de setembro, a deputada voltou a atacar o uso das máscaras e citou um experimento de um perito austríaco que diz que o equipamento aumenta a concentração de CO2 e que isso é “abuso infantil”. A experiência foi publicada no site “A Áustria é livre”, com um aviso de que os “testes realizados correspondem a um teste preliminar” e que “não deve ser avaliado como um estudo”.

O site é definido pela própria fundadora Edith Brötzner como uma “iniciativa que pretende lembrar aos cidadãos que o pensamento livre, independente e crítico é desejado, permitido e agora mais do que nunca necessário”. Para ela, “especialistas cujas ideias e percepções diferem das do governo são degradados a ‘teóricos da conspiração’”.

O vídeo dos “autotestes” foi checado pelo site alemão Mimikama. Ele publicou a entrevista com o professor Uwe Pliquett, do Instituto de Bioprocessos e Metrologia Analítica. Segundo ele, o equipamento é utilizado para “medições do ar ambiente” por meio da concentração do CO2 e também da pressão de ar. Quando o equipamento é colocado debaixo da máscara, muito próximo do nariz, a quantidade de CO2 exalada e a pressão extra fazer o equipamento soar o alarme. No entanto, o especialista explicou que o instrumento mostrado no vídeo “não é adequado para analisar o ar que você respira, pois os valores mudam muito rapidamente durante a expiração e a inspiração. A umidade mais alta e o aumento da pressão do ar ao respirar também falsificam maciçamente os resultados do dispositivo”.

Outros comentários também criticam a postagem da parlamentar. Procurada, ela não respondeu aos questionamentos do Comprova até a publicação deste texto.

O que afirmam os especialistas
As máscaras têm filtros que impedem a passagem das gotículas e partículas maiores, mas permitem a troca de gases como o gás carbônico (CO2) e o oxigênio (O2), explicou o infectologista do Instituto Emílio Ribas Jean Gorinchteyn, em maio. “Os poros não evitam a passagem do ar, são filtros, filtram partículas. Os gases têm tamanho muito menor e conseguem passar”, ressaltou o médico e atual secretário de Saúde de São Paulo, contrariando o experimento do perito austríaco citado pela deputada alemã.

Em entrevista ao Comprova em agosto, a professora e pesquisadora Giliane Trindade, do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explicou que o uso de máscaras impede que pessoas pré-sintomáticas ou assintomáticas liberem partículas virais ao falar, tossir ou espirrar. “A finalidade do uso da máscara é justamente evitar a pulverização dessas gotículas de saliva, evitando que elas atinjam a superfície do rosto de outras pessoas ou superfícies inanimadas, como por exemplo, corrimão, assento de ônibus, lugares em que as pessoas vão ter mais contato”, esclareceu.

O Centro de Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos mantém uma página com dicas para o uso de máscaras como forma de “desacelerar a disseminação da covid-19”. O órgão informa que “máscaras são recomendadas como uma simples barreira para impedir que as gotículas respiratórias” se espalhem toda vez que uma pessoa “espirrar, tossir ou falar”. Essas gotículas são as responsáveis por transportar o novo coronavírus de uma pessoa infectada a outra. O órgão ainda traz links para estudos que comprovaram a eficácia das máscaras na contenção da disseminação da doença.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o uso de máscaras em áreas onde o distanciamento social não é possível e onde há disseminação da covid-19. É o caso, por exemplo, de meios de transporte coletivo, estabelecimentos comerciais e locais de trabalho. A OMS ainda faz um apelo: “Por favor, siga as recomendações das autoridades locais sobre o uso de máscaras. Juntos, podemos vencer a covid-19.”

O que diz o partido AfD sobre a pandemia?
O partido de Birgit Malsack-Winkemann não vem adotando uma postura negacionista sobre a pandemia do novo coronavírus. No dia 4 de março, o conselho federal do partido, em Berlim, mandou cancelar todos os eventos públicos, inclusive nos conselhos estaduais, por causa dos riscos de contaminação: “No momento, porém, o perigo de uma pandemia real parece alarmantemente real em grande escala. Não podemos e não devemos ignorar isso. Temos o dever de responder de forma responsável e adequada. Vamos cumprir esse dever juntos”, diz o comunicado.

Membros do partido, como a vice-presidente federal Alice Weidel, criticam a postura do governo de Merkel em relação ao plano de combate ao coronavírus. “Há sete anos, o governo federal determinou corretamente as consequências de uma pandemia para o nosso país — e reconheceu os problemas que surgiriam em tal situação. Mas, embora Angela Merkel, que já era chanceler e permanece no cargo, tenha sido informada sobre o problema, nem ela nem o Ministério da Saúde agiram de acordo”, disse Weidel, em um comunicado disponível no site oficial do AfD.

programa do partido defende um “retorno aos princípios e raízes que resultaram em seu milagre econômico [da Alemanha], seguido de êxito social, econômico e em sua sociedade”. O programa é contrário à União Europeia como uma aliança econômica e defende a realização de um referendo sobre o euro. O partido defende reforço na polícia e melhoria na justiça penal e “proteção às vítimas no lugar de proteção aos delinquentes”.

Também defendem uma reforma nas Nações Unidas, a OTAN como uma coalizão de defesa, o reforço no Exército alemão e a retomada do serviço militar obrigatório. No campo econômico, defendem reforma dos sistemas de previdência social. Também são defensores do que chamam de “família tradicional” e contrários à imigração em massa.

Na loja virtual do partido, está à venda um folheto contrário ao movimento antifascista e também máscaras com seu logotipo. O Comprova entrou em contato com o partido sobre a postagem de sua parlamentar, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.

Por que investigamos?
Em sua terceira fase, o Comprova checa conteúdos virais que possam espalhar desinformação nas redes sociais sobre a pandemia de covid-19. O texto do Conexão Política teve mais de 8 mil interações no Facebook até o dia 22 de setembro e ganhou visibilidade após ser retuitado pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). A postagem do parlamentar foi retuitada 1,8 mil vezes até a mesma data.

Conteúdos com alegações enganosas enfraquecem a confiança da população em instituições sanitárias e podem dificultar os esforços de combate à pandemia. Autoridades médicas e acadêmicas defendem o uso de máscara como uma das formas de se voltar à normalidade sem aumentar a disseminação da doença.

Não é a primeira vez que essa técnica de proteção foi alvo de desinformação. O Comprova já checou boatos que negavam a eficácia das máscaras em proteger as pessoas, enquanto outros afirmavam poder ser nociva sua utilização. Também verificamos postagens alarmistas com alegações de que máscaras exportadas pela China estariam contaminadas. Tais alegações não encontram respaldo científico.

Este conteúdo cruzou fronteiras e também foi checado pelas agências Boatos.org no Brasil, Newtral na Espanha, Polígrafo em Portugal, e pelo jornal Le Monde na França. Todos concluíram que o uso de máscaras como medida de proteção contra o novo coronavírus não foi colocado em xeque por causa do incidente.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

*Esta checagem foi postada originalmente pelo Projeto Comprova, uma coalizão formada por 29 veículos de mídia, incluindo o CORREIO, a fim de identificar e enfraquecer as sofisticadas técnicas de manipulação e disseminação de conteúdo enganoso que surgem em sites, aplicativos de mensagens e redes sociais. Esta investigação foi conduzida por jornalistas do CORREIO e Estadão, e validada, através do processo de crosscheck, por nove veículos: Jornal do Commercio, Nexo, UOL, Poder 360, SBT, Folha, NSC, BandNews FM e Gaúcha ZH.