Moradores dos novos bairros ficam surpresos com oficialização: ‘E era o quê?’
A maioria dos moradores das sete localidades que, agora, já podem ser chamadas oficialmente de bairros descobriu que não conhece tão a fundo o local em que habita. Isso porque boa parte dos entrevistados pela reportagem do CORREIO não fazia ideia de que o lugar não se caracterizava como bairro até a manhã desta terça-feira (1º), quando o prefeito ACM Neto oficializou a nomeação de sete novos bairros por meio de decreto.
Entre risos e expressões de surpresa, os soteropolitanos desses locais falaram sobre a sensação de pertencimento aos lugares onde vivem e a consolidação das áreas como bairro antes mesmo que o poder público as oficializasse.
Na lista dos novatos que já são muito bem conhecidos pelos soteropolitanos estão os bairros Mirantes de Periperi, Dois de Julho, Chame-Chame, Colinas de Periperi, Horto Florestal, Ilha Amarela e Vista Alegre. A oficialização dos bairros foi possibilitada pelo artigo 7 da Lei 9.278/2017, que permite a criação de novos bairros através da realização de estudos técnicos do poder executivo e de Ato Declaratório para regularização do estudo.
Dois de Julho
Uma das pessoas que mais se surpreenderam com a notícia foi a aposentada Luzvaldina Santos, 70 anos, que mora no Dois de Julho e declarou que o decreto só reafirma um bairro que já é visto assim por todos. “E era o quê? Não estava sabendo que não era bairro. Até a correspondência já vem como bairro Dois de Julho. A oficialização deste decreto só veio pra confirmar de maneira oficial o que já está garantido. O Dois de Julho é um bairro. E um ótimo bairro, diga-se. Se você procurar bem, não vai achar um pra dizer que não era bairro. Só se soube hoje depois que tornaram oficial”, garante. Em resumo, Luzvaldina está mesmo certa. Não houve um que dissesse conhecer o fato do Dois de Julho não ser um bairro anteriormente.
O motorista Eduardo de Oliveira, 42 anos, segue a mesma linha da aposentada e afirma que sempre executou trâmites que necessitavam de endereço nomeando o Dois de Julho como bairro. “Claro que não sabia. Aqui todo mundo fala bairro Dois de Julho. Se perguntam onde eu moro, digo bairro Dois de Julho. Na minha encomenda, boto bairro Dois de Julho. E a vizinhança toda faz o mesmo. Tava era por fora que não era e agora é. Mas, mesmo se não fosse, a gente ia chamar assim e dizer que é bairro”, brinca Eduardo.
Outros moradores confirmaram a identificação do local como bairro: “Sempre achei que fosse um bairro e moro aqui há 40 anos”, diz Patrícia Matos, 40. “O costume das pessoas aqui é chamar de bairro de Dois de Julho, todo mundo achava que aqui já era um bairro. Se colocou como oficial, é melhor. Todo mundo chama dessa maneira. Não tem por que a prefeitura chamar diferente”, argumenta a comerciante Margareth Teixeira, 48.
O estranhamento da população e a sensação de pertencimento e identificação das áreas como bairro é um fato comum para Bete Santos, professora da escola de administração da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e coordenadora do estudo Caminho das Águas, que teve como um de seus produtos a proposta de delimitação de bairros, que foi incorporada pela prefeitura ao fazer a lei. Bete afirma que, no caso do Dois de Julho, que ela acompanhou e conhece, a oficialização é legítima.
“Pessoalmente, acompanhei a reivindicação do Dois de Julho e considero que de fato é uma reivindicação legítima, uma vez que atende de forma satisfatória todos os critérios da lei dos bairros. O Dois de Julho tem uma comunidade organizada e ativa e seus moradores têm uma relação de pertencimento e identidade muito clara com o território. Além de possuir os critérios urbanos elencados no Art. 4 da lei”, conta Bete.
Pertencimento e consolidação dos bairros
O sentimento dos moradores do Dois de Julho é bem parecido com o dos habitantes dos outros bairros oficializados pelo decreto. Em Mirantes de Periperi, os cidadãos já entendem há tempos a área assim e dizem, em conversas ou documentos oficiais, que o seu bairro é Mirantes, não Periperi. Pelo menos é o que garante Ícaro Chagas, 27, estudante de administração e morador do local desde que nasceu.
“Todo mundo aqui foi pego distraído porque já se tem isso aqui como bairro. Pelo que comentei com algumas pessoas mais próximas, depois da notícia de oficialização do bairro, as respostas que obtive eram essas ‘mas aqui já não era bairro?’, ‘pra mim, aqui é bairro já há alguns anos’, ‘nem sabia que aqui não era bairro’. A diferença é que, assim como quem mora aqui, a prefeitura agora reconhece como um bairro também”, afirma.
Ícaro confirma que, no início, Mirantes era uma extensão de Periperi, mas ressalta que essa realidade mudou faz um tempo. “Na década de 80, época de criação, existia a sensação que aqui era um anexo de Periperi porque coisas importantes como mercado, farmácia e ônibus só ficavam por lá. Mas isso já mudou tem uns 15 anos, quando começou a brotar um comércio mais sólido por aqui. Já tinham muitos ônibus servindo e as invasões em volta da área estavam crescendo e ocupando antigas áreas verdes nos arredores”, conta.
De acordo com ele, o agora bairro evoluiu muito em termos de serviços comerciais, escolas, transporte público e segurança. “Já temos estrutura econômica e educacional não só pra quem mora nos conjuntos, quanto nos arredores, e podemos ser considerados bairro. Fiquei muito satisfeito com a mudança e ela veio pra efetivar uma sensação de independência que já tínhamos há cerca de 15 anos”, relata.
Horto Florestal e Ilha Amarela
Para a advogada Rosana Pinho, moradora do Horto Florestal, o bairro já estava consolidado e ela só sabia que não era bairro de fato por conta da escritura do seu imóvel. “Eu só tinha ideia de que aqui não era bairro porque na escritura do meu apartamento diz que aqui é um subdistrito de Brotas. Mesmo assim, eu sempre coloquei o bairro Horto Florestal. Eu não sabia que já tinha oficializado. Mas isso não muda tanto porque, se você procurar apartamento ou endereço, vem Horto Florestal na hora. Só no CEP que não acontece. É uma consequência da expansão do local e da ideia de pertencimento que é partilhada pela maioria. A gente só cita Brotas pra referenciar o local. Bom saber que agora podemos usar com ainda mais propriedade”, comemora a advogada.
Em Ilha Amarela, novo bairro que fica próximo de Plataforma e Itacaranha, a sensação é a mesma. de acordo com Diego Cardoso, 38, artista plástico que reside no local. “Ao meu ver, Ilha Amarela sempre foi bairro. Todos os meus documentos e as minhas contas que são gerados vêm com a Ilha Amarela como bairro. Nunca tivemos dúvidas sobre isso. A área aqui tem escolas, postos de saúde, transporte e todos já têm essa identificação com o local como nosso bairro. É claro que precisamos de melhorias e evolução, mas, com o que se tem hoje, já considerávamos como bairro antes mesmo da oficialização”, declara o artista plástico, que desenvolve projetos que são assinados categorizando a Ilha como bairro.
Qual o critério?
Para serem considerados como bairros, as localidades passaram por uma avaliação da prefeitura que entendeu que as áreas contemplavam os critérios estabelecidos para oficialização. Cada bairro precisa ter:
– Unidade escolar;
– Unidade de saúde geral ou especializada;
– Logradouro público que permita a circulação de veículos de grande porte e prestação de serviço;
– Oferta de transporte público regulamentado.
O último critério, que corresponde ao serviço e à oferta de transporte público regulamentado foi questionado pelos moradores de Colinas de Periperi. Eles afirmam que, na região, não há presença do trasporte formal há três anos. Sobre isso, a Secretaria Municipal de Mobilidade (Semob) apresenta outra versão e sustenta que todos os sete bairros contam com atendimento de transporte. Segundo a secretaria, atualmente, devido à pandemia, a frota de Salvador opera com até 80% do total de veículos.
O que muda
O que realmente muda para estes locais? A professora Bete diz que a diferença entre localidade e bairro está ancorada na complexidade e que, ao se tornar bairro, um local ganha centralidade e um atestado de complexidade.
“A sua identidade ganha estatuto e expressão própria. Um bairro é um território com identidade e portador de um conjunto de atributos urbanos. Diferente de uma localidade, na qual você também se reconhece, mas é uma porção territorial de um bairro, podendo ser um loteamento, um conjunto habitacional de pequeno ou médio porte, uma ocupação com características peculiares, que se torna referência, mas que não apresenta uma centralidade claramente definida e, sobretudo, que não possui a mesma densidade e complexidade de um bairro”, explica.
Essa diferenciação permite também que os bairros sejam avaliados e atendidos conforme as suas características e peculiaridades. Em decisões de interdição do comércio por causa da pandemia, por exemplo, estes agora bairros só terão as lojas interditadas se a população do local apresentar um crescimento preocupante do número de infectados. Antes, a interdição aconteceria com a influência de dados do bairro “matriz”.
Ainda segundo Bete, a delimitação e o reconhecimento de um bairro não pode ser algo burocrático. Para ela, o pertencimento apresentado pelos moradores é critério fundamental no processo. “A delimitação de um bairro não pode, não deve ser um ator burocrático-administrativo nem atender a demandas pontuais de um outro morador ou liderança. Se assim o for perde legitimidade. Perde o que é mais legítimo nesse processo que é a noção de pertencimento – coletiva e historicamente construída. Um bairro deve ser expressão de um processo histórico de construção de um território, dos sentidos e significados atribuídos pelo conjunto dos seus moradores”, ratifica.
O que é Chame-Chame?
Se o critério for identificação com o local, pelo menos entre os entrevistados pela reportagem, a oficialização do Chame-Chame pode ser desfeita. Os moradores da região não gostaram da mudança e questionam a necessidade desta.
“Foi uma surpresa que não fez muito sentido pra mim essa transformação em bairro. Mesmo que a dimensão territorial contemple isso, acho que não há uma identidade dos moradores com essa nomeação. Eu acredito que isso só ajuda os Correios por uma questão de logística. Eu sempre entendi e coloquei que meu bairro era a Barra. Isso não muda pra mim”, diz Alex Santiago, 39 anos, coordenador de pessoal.
Railson Ferreira, 33, comerciante do bairro, vai além e diz que o decreto desvaloriza a região. “Eu acho que não faz muito sentido porque todo mundo chama de Barra, aqui pouquíssimas pessoas chamam de Chame-Chame. Não gosto da mudança, não. Acho até que essa iniciativa desvaloriza a localização. Uma coisa é falar Barra, que é um bairro reconhecido por todos. Chame-Chame é outros quinhentos”, reclama.
Railson Ferreira, 33, comerciante |
Importância da delimitação
Entre as surpresas, alegrias e reclamações dos moradores, o prefeito ACM Neto comemorou a assinatura do decreto que consolida a mudança. Para Neto, a lei contempla a necessidade que o poder público tem de refletir a dinamicidade de Salvador.
“O bairro é uma divisão territorial com densidade histórica, dinâmica, que incorpora noções de identidade e isso foi algo muito respeitado pela prefeitura. Me parece que esse é um dos pontos mais importantes. A formação de um bairro passa muito pelo sentimento de pertencimento, e ele é muito distinto em cada região da cidade. A lei deve refletir o que a história, dinâmica da vida e as pessoas foram definindo na prática”, explicou o prefeito, em entrevista.
A professora Bete Santos, da Ufba, que também fica contente com a execução do projeto pela prefeitura, concluiu dizendo que espera que a ação tenha sido feita dentro de uma lógica metodológica coerente: “Delimitar um bairro é um ato político no sentido pleno da palavra. Não estou falando da política partidária, mas no caráter público, coletivo da construção de recortes territoriais nos quais o cidadão se reconheça. Por isso, reforçamos a importância de que a prefeitura preserve a ação de consulta ao conjunto de associações e de moradores no trabalho necessário de atualização da nossa Lei de Bairros. Espero que isso tenha sido feito nessa atualização que acaba de ser anunciada”.
*Sob orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro