‘Meu pai foi um dos únicos pretos na escola de Medicina; 32 anos depois, minha formatura foi igual’
Trajetória de rara família de médicos negros brasileiros ilustra o abismo racial presente em uma das profissões mais valorizada e bem pagas do país Juliana Estevão de Oliveira se formou em medicina em 2010; o pai, Juarez, se graduou no mesmo curso em 1978
Arquivo Pessoal
A cor branca não estampa só as paredes, leitos, jalecos e corredores de hospitais e consultórios no Brasil.
“Meu pai foi um dos únicos pretos na escola de Medicina. Era ele, um homem e uma mulher numa classe de 80 pessoas”, conta a médica Juliana Estevão de Oliveira, formada em 2010 pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Na minha festa formatura, 32 anos depois, éramos 160 alunos e o cenário era igual.”
Apesar da redução da desigualdade nas universidades nas últimas décadas, os mais de 30 anos que separam as formaturas da rara família de médicos negros de Minas Gerais ilustram o abismo racial — e o apagão de informações — existentes em uma das profissões mais valorizadas e bem pagas do país.
Hoje residente de oftalmologia no Hospital das Clínicas da Universidade Federal da Bahia, em Salvador, Juliana conta que o “pai passou 6 anos praticamente sem dormir” até se tornar a primeira pessoa da família com um curso superior.
Médicos e médicas negras fundaram o Instututo Luiza Mahin, criado para reunir profissionais de todo o país e desenvolver projetos para reduzir a desigualdade racial na medicina
Iluma
“Ele trabalhava a madrugada toda fazendo compensação de cheques na Caixa Econômica Federal. De lá, passava o dia inteiro na faculdade, porque o curso é integral.”
Enquanto os cursos em universidades públicas são tradicionalmente os mais difíceis e disputados do país, as mensalidades de medicina em escolas privadas — igualmente concorridas — atualmente podem ultrapassar R$ 13 mil mensais.
Depois de viver em uma favela e trabalhar de madrugada para pagar os estudos, Juarez foi a primeira pessoa da família a comemorar sua formatura em um curso superior
Arquivo Pessoal
“Hoje, mesmo com esse esforço, ele nunca conseguiria se formar com o salário que tinha”, diz a médica que, diferente do pai, pôde estudar em bons colégios, se dedicar integralmente ao curso de medicina e começar a trabalhar apenas aos 27 anos, já formada.
“A história lá de casa é a prova de que um negro que ascende faz ascender junto a família toda”, afirma. “Na minha geração, dos netos do vovô, todos nós hoje temos curso superior.”
Disparidade
Hoje, Juliana faz parte da primeira associação de médicos e estudantes de medicina negros do Brasil — o Iluma, Instituto Luiza Mahin, criado para reunir profissionais de todo o país e desenvolver projetos para reduzir a desigualdade racial na medicina.
Fundado no ano passado, o grupo acaba de lançar um programa de financiamento, apoio e orientação para que estudantes negros consigam completar a universidade.
Família celebra a formatura de Juliana em Medicina pela UFMG, em 2010
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“A ideia é garantir recursos financeiros para estudantes de medicina pretos e carentes. Buscamos doadores para garantirmos bolsas de R$ 400 por mês. Pode parecer pouco, mas é bastante para quem está deixando de estudar porque não tem o que comer ou porque não consegue comprar livros.”
Procurados pela reportagem, nem o Ministério da Educação, nem o Conselho Federal de Medicina dizem ter dados consolidados sobre o percentual de formandos negros em medicina no país.
Mas uma pesquisa da Universidade de São Paulo publicada em 2018 ilustra a disparidade na profissão.
Enquanto 56% dos brasileiros se declaram negros (pretos ou pardos), segundo o IBGE, apenas 18% dos médicos brasileiros diziam se encaixar neste grupo, de acordo com o estudo.
Mas se os médicos negros são minoria no país, os pacientes negros representam a maioria esmagadora dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) e respondem por 76% dos atendimentos e 81% das internações no SUS, segundo o IBGE.
“Tem estudante que vive com R$ 300 por pessoa na família, por mês. É um milagre estudar assim”, diz a médica. Além da diferença econômica, o “choque racial para estudantes pretos é enorme”, ela explica.
“Muitos destes estudantes vivem em periferias e convivem principalmente com pessoas negras. Então, às vezes pela primeira vez na vida, estão cercados de estudantes brancos e se pegam sendo o chamado ‘negro único’ pela primeira vez. Se destacam pelo jeito que falam, que se vestem, pela música que escutam. A pessoa se sente isolada e não tem com quem compartilhar essa tensão silenciosa.”
Fotos de formatura
Filho de um seleiro (artesão que trabalha com couro) nascido em 1892, pouco depois da abolição da escravidão, Juarez Estevão de Oliveira, pai de Juliana, veio do interior de Minas Gerais para a casa de um parente em uma favela de Belo Horizonte.
Juliana hoje é residente de oftalmologia no Hospital das Clínicas da Universidade Federal da Bahia, em Salvador
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“Eles eram tão pobres que não tinham dinheiro para tomar banho quente”, conta Juliana.
Provavelmente o primeiro homem livre da família, o avô morreu em 1992, aos 100 anos.
“Eu infelizmente ainda era muito nova para ter curiosidade para temas raciais, então não pude conversar sobre isso com ele”, lamenta.
Além do baixo número de colegas negros nas formaturas, Juliana compara as fotos de família nas festas de diplomação das duas gerações.
“A diferença é absurda. Na formatura do meu pai, ele e minha mãe estavam muito alegres, com sorriso no rosto e o peito estufado. O resto da família — os irmãos e meu avô — parece envergonhado, olhando para baixo, com sorriso contido.”
“A história lá de casa é a prova de que um negro que ascende faz ascender junto a família toda”, afirma Juliana. “Na minha geração, dos netos do vovô, todos nós hoje temos curso superior.”
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Ela explica: “É claro que estavam mortos de alegria em ver o parente se formando. Mas o racismo é algo enorme e coloca a pessoa negra que demonstra sentimentos como alguém dando vexame, como quem não sabe se comportar. Assim, mesmo eufóricos, meus parentes se fecharam dessa maneira”.
“Já nas minhas fotos, você vê a diferença”, ela prossegue. “Todo mundo sorrindo, todo mundo olhando para a câmera.”
Juliana celebra a “clara mudança” de postura.
“Estamos dizendo ‘eu posso, eu conquistei, eu estou aqui e tenho o direito de gritar e comemorar como eu quiser’.”
“Meu pai foi um dos únicos pretos na escola de Medicina. Era ele, um homem e uma mulher numa classe de 80 pessoas”, conta a médica
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Diversidade racial na medicina
O objetivo do programa de financiamento do Iluma é garantir “recursos financeiros e mentoria” para a estudantes de medicina negros de baixa renda.
A mentoria — que inclui acompanhamento de atividades acadêmicas, notas e desempenho — é feita por médicas e médicos negros.
“A gente trabalha para garantir meios para que a pessoa consiga seguir em frente e se formar”, explica Juliana Oliveira.
Já as doações mensais de R$ 400 podem ser feitas por qualquer um disposto a contribuir com o aumento da diversidade racial na medicina (mais detalhes aqui).
Lançada oficialmente em dezembro de 2019, durante uma solenidade na Assembleia Legislativa de São Paulo, a associação se propõe a promover e assegurar equidade de direitos políticos, educacionais, sociais e econômicos para a população negra.
Entre os objetivos do instituto estão a busca por “sustentabilidade econômica” para esta parcela da população, a defesa da educação e saúde gratuitas e de qualidade, o combate ao “encarceramento sistemático da população negra”, a “representatividade política como condição essencial para exercício do direito ao voto” e o “fomento do engajamento de jovens e jovens adultos negros na luta antirracista”.
Dos 209,2 milhões de brasileiros, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE, 19,2 milhões se autodeclaram pretos e 89,7 milhões se apresentam como pardos.
Dados referentes a 2018, divulgados em novembro de 2019 pelo IBGE, mostraram que, pela primeira vez na história, o número de estudantes negros em faculdades públicas brasileiras superou o de alunos brancos: 50,3% de pretos e pardos contra 49,7% de brancos.
Apesar de ainda não se refletir nos cursos mais disputados, como é o caso de medicina, a conquista, segundo o IBGE, é um fruto direto da política de cotas raciais nas universidades públicas.
Apesar de terem superado o número de brancos nas faculdades públicas, a maioria dos universitários pretos (66,86%) e pardos (73,54%) brasileiros estuda em faculdades particulares, segundo dados de 2018 do Inep.
‘Não vive, não sabe’
Juliana conta que ter nascido em uma família com boas condições financeiras trouxe vantagens indiscutíveis, mas não tornou sua trajetória igual a de colegas de profissão brancos.
“A tensão racial esteve presente em todos os lugares, desde a universidade até hoje.”
Durante a entrevista, a médica enumera uma série de episódios racistas vividos ao longo da carreira.
“Acontece muito por eu hoje usar um cabelo afro, que expõe gritantemente a minha raça e meu posicionamento político — porque usar um black power é um gesto político”, diz.
Além de comentários racistas sobre sua aparência, Juliana ilustra as barreiras na profissão pela ausência de equipamentos de proteção individual pensados para profissionais negros.
“Por exemplo, a touca que todos nós usamos nos procedimentos. Não existe touca para médico preto. Não se encontra touca médica onde caiba um black power, um dreadlock, uma trança. Nada.”
As de Juliana são feitas em cetim por encomenda.
“Quando souberam, minhas colegas disseram que nunca pensaram sobre a dificuldade das touquinhas para cirurgiões negros.”
Ela explica: “Você não vive, você não sabe”.
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