Massacre das abelhas: 75 milhões envenenadas por agrotóxicos na Bahia
Um avião no céu e um rastro de até 75 milhões de abelhas mortas no chão. Depois de ser atingidas por uma garoa de agrotóxicos, na região rural de Monte Pascoal, distrito de Itabela, Extremo-sul baiano, os insetos morreram, envenenados. O CORREIO teve acesso, com exclusividade, às análise laboratoriais que revelaram, nas abelhas mortas, envenenamento por aditivos. O impacto ambiental ainda é imensurável e as abelhas continuam a morrer em diferentes regiões. Somente neste ano, 16 milhões delas desapareceram na Bahia com suspeita de envenenamento.
Os exames foram entregues ao Ministério Público da Bahia (MP), que investiga o caso, quase dois anos depois da mortandade das milhões de abelhas, em setembro de 2018. Segundo apicultores da região, uma aeronave lançou agrotóxicos sobre plantações de café naquele mês. Os apicultores ainda não recuperaram todas as abelhas. É necessária uma espera de até três anos para compor os enxames completos, com rainhas, operárias e zangões.
Abelhas mortas no Extremo-sul baiano: mortandade estaria ligada à pulverização aérea de agrotóxicos em cafezais (Foto: Divulgação) |
As análises encontraram três agrotóxicos nas abelhas: clorpirifós-etílico, clomazona e fipronil, associado a mortes de abelhas ao redor do mundo. Os três, conforme a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, são “muito perigosos ao meio ambiente”. Os aditivos foram introduzidos no país, respectivamente, pela Basf e FMC, em 2008, e Nortox, a partir de 1994. As duas primeiras defendem a segurança dos produtos, se usados corretamente. A Nortox não respondeu. (leia íntegra das notas abaixo).
O período das mortes em Monte Pascoal coincide a florada do café, quando as abelhas, de flor em flor, transferem os grãos de pólen e possibilitam o surgimento de sementes e frutos – processo chamado de polinização. É um transporte fundamental tanto à agricultura, ao possibilitar a fecundação e a variabilidade genética, quanto às abelhas, que se alimentam do néctar das flores. Como não existe regulamentação quanto à aplicação de aditivos durante a florada, resta o diálogo.
Os três apicultores afetados dizem que a pulverização durante a florada foi um “erro”. Com as flores abertas, as plantas ficam mais frágeis e os aditivos também podem matá-las. Os produtores agrícolas apresentam outra versão.
Bastava chegar aos seus três apiários, duas horas depois da aplicação, para Dario Chiachiarini, 45 anos, encontrar abelhas cambaleantes e outras já mortas, formando um tapete, ele conta. Todas morreram. A subsistência de Dário, proprietário de 600 caixas, foi junto. Foram, calculam os apicultores, 750 caixas de abelhas perdidas. Cada caixa, conjunto de abelhas numa colmeia, abriga de 80 mil a 100 mil insetos.
“Imagine perder tudo. É uma pena que os donos da terra não compreendam que abelha é vida”, lamentou o argentino, que chegou à Bahia em 2015.
A morte das abelhas não afeta só apicultores ou agricultores. Três entre quatro tipos de alimentos dependem das abelhas, estima a Organização das Nações Unidos (ONU). No século 20, uma frase atribuída a Albert Einstein diz que, se desaparecessem as abelhas, sumiriam também os homens. Sem elas, viveríamos, no máximo, quatro anos.
Agricultor diz que não houve erro
Numa manhã daquele mês de setembro, Elinaldo* encontrou os 70 enxames que possuía – entre cinco e sete milhões de abelhas – mortos. Os apiários são colocados dentro ou próximos de propriedades agrícolas para que as abelhas recolham o néctar das flores na língua e, na volta, depositem na colmeia. Depois uma desidratação natural, o mel é formado. “Liguei para um vizinho, e ele disse que as abelhas também morreram”, conta. Os dois pediram anonimato.
Abelha polinizando flores, um processo fundamental para a biodiversidade (Foto: José Monteiro/Arquivo Pessoal) |
O Fórum Baiano de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos (FBCA), integrado pelos Ministérios Públicos estadual e federal, organizações da sociedade civil e universidades, foi acionado e uma denúncia formal ao MP da Bahia protocolada. O promotor Maurício Magnavita, de Porto Seguro, à frente do caso, afirmou que o resultado dos exames ainda não chegou em suas mãos. Só depois disso poderá se pronunciar.
As coletas precisaram ser enviadas ao Laboratório da Universidade Federal de Santa Maria (Larp), no Rio Grande do Sul. A Bahia não possui laboratório para analisar resíduos tóxicos em insetos. Também foram encaminhadas amostras de mel, nas quais foram encontrados agrotóxicos acima do limite permitido, e folhas de café, com resíduos de quatro aditivos não recomendados para a cafeicultura, como a clomazona. O FBCA conseguiu apoio do Fórum Gaúcho e do Larp para bancar a análise laboratorial. Cada análise chega a custar R$ 1,2 mil.
O produtor Roberto Couvre, responsável por três das quatro fazendas citadas na denúncia encaminhado ao MP, afirmou ter acontecido pulverização de agrotóxico anteriormente à florada. “Estava acontecendo uma mortalidade dessas abelhas já antes da pulverização. Muitas chegaram de uma viagem mortas”, diz. Ele também afirma que os apicultores não tinham autorização para estar nas propriedades da família, uma das pioneiras na produção de café em Itabela, onde estão desde os anos 80. Os grãos produzidos no local são vendidos para boa parte do país.
Os apicultores migram as caixas conforme despontam as flores de onde as abelhas possam extrair o néctar, em diferentes culturas. Os acordos entre apicultores e agricultores costumam ser informais. Produtores de mel negam ter ocorrido morte de abelhas antes da pulverização e a falta de autorização para colocar as caixas com abelhas nas fazendas.
Na outra propriedade citada, a Muqui, um dos responsáveis, Vinicius Grassi, afirmou que um dos apicultores tinham autorização para estar na propriedade. Lá, onde produzem café há 30 anos, ele nega ter ocorrido pulverização na época da florada. “Sempre deixamos os apicultores entrarem aqui e nunca tivemos nenhum tipo de problema. Se houve algum problema, não veio daqui”, diz. Os sacos do grão são vendidos no Brasil e exportados para o exterior.
“Espero que isso não abra precedente para que ninguém mais queira deixar que coloquem caixas dentro de propriedades”, complementa.
A produção daquele ano ainda estava no início e foi jogada no lixo pelos apicultores. A Bahia é o sétimo maior produtor de mel do país, segundo a Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR). Em 2019, foram 3,9 mil toneladas. O estado tem 20 mil apicultores e 400 mil colmeias. A produção em Itabela não foi detalhada.
O Extremo-sul da Bahia, por outro lado, é o principal produtor de café conilon da Bahia e o quarto do país – em 2018, segundo a Secretaria Estadual de Agricultura, foram 82.646 toneladas. Esse é o tipo de café mais consumido no Brasil.
O presidente da Federação Baiana de Apicultura e Meliponicultura, Franciélio Machado, acredita que a pulverização de agrotóxico – quando realizada sem diálogo entre agricultores e apicultores, sobretudo – preocupa não só pelo prejuízo, como pelo impacto no mel. Assim como inexistem levantamentos de quantas abelhas morrem envenenadas, ou qualquer política pública de atenção ao assunto, faltam monitoramentos de resíduos em produtos da apicultura.
A Associação de Produtores de Café da Bahia, por meio do presidente João Lopes Araújo, declarou: “nós defendemos que a abelha é fundamental. A gente lamenta que essas questões tenham sido pouco consideradas ao longo do tempo, pelo fato de raramente existir comprovação [de abelhas contaminadas]”.
16 milhões de abelhas podem ter morrido neste ano
No mês de fevereiro, em Serra do Ramalho, cidade no Oeste baiano que é a oitava maior produtora de mel do estado – 80 toneladas em 2018 -, 14 milhões de abelhas desapareceram dos apiários, próximos de plantios de sorgo. O motivo, ninguém soube explicar. As mortes geraram uma denúncia na Agência de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab). O autor da denúncoa não quis dar entrevista.
O desaparecimento de abelhas na Bahia começou a ser mapeado pela Adab em 2016. O órgão não informou quantas denúncias ocorreram, mas a reportagem apurou a existência de outras duas em 2018: em Quijingue, no Nordeste do estado, e em Brotas de Macaúbas, na Chapada Diamantina. Nenhuma delas chegou a ser investigada.
A denúncia, na prática, serve para mapear casos, nada além disso, pois exames não são feitos, exceto se algum órgão intervir. “Muitos apicultores perdem as abelhas, é frequente. A dificuldade é conseguir fazermos os exames laboratoriais”, avalia Luciana Khoury, promotora do MP-BA e presidente do Fórum Baiana de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos.
Também em fevereiro, em Jânio Quadros, no Sudoeste da Bahia, um apicultor denunciou a morte de 20 colmeias, entre 1,6 a dois milhões de abelhas, colocadas vizinhas a pastagens. Dessa vez, o produtor de mel retirou a denúncia, para evitar conflitos com produtores da região. A coordenadora do Programa de Sanidade de Abelhas da Adab, Rejane Noronha, diz que, normalmente, os apicultores sequer denunciam, pois precisam das fazendas para colocar os apiários.
“Há muitos e muitos casos que não são notificados. Deveria ser obrigação federal custear isso. Mas quem vai brigar com a indústria e pressionar para que morte por agrotóxico sejam de notificação compulsória?”, questiona Rejane.
As criações de abelhas mais afetadas costumam estar próximas a extensas produções de monocultura, como soja, cana, eucalipto e café. O Ministério da Agricultura foi questionado sobre o desaparecimento das abelhas, mas repassou a demanda ao Ibama. Questionado, o órgão também não respondeu.
A SDR da Bahia disse reconhecer o prejuízo da morte de abelhas. “Nós acompanhamos essas questões, porque sabemos que há um impacto direto na apicultura e na agricultura. Mas há uma grande dificuldade, e não só na Bahia, de investigar”, completa Marivanda Eloy, coordenadora estadual de apicultura da pasta. A Seagri não se pronunciou.
Outros insetos podem estar morrendo
As abelhas são consideradas os elementos mais importantes para a biodiversidade. Pelo menos 90% da polinização realizada por insetos ou animais é feita por elas. No Brasil, há 1,6 mil espécies de abelhas catalogadas. Delas, em média 300 são nativas.
“Mesmo as que não dependem 100% das abelhas, tem a produção aumentada, a qualidade, o peso, aumentado, quando há polinização por abelhas”, explica Favízia de Oliveira, uma das únicas taxonomistas de abelhas no Brasil e professora da Universidade Federal da Bahia.
A primeira vez em que se falou sobre a mortandade em massa de abelhas foi em 2005, nos Estados Unidos, no que ficou conhecido como Distúrbio do Colapso das Colônias. O Brasil registrou o primeiro caso no mesmo ano, em São Paulo. Na Bahia, não há catalogação, o que não significa que o fenômeno não exista, como sugerem os números.
A morte de abelhas tem sido associada, principalmente, aos aditivos à base de fipronil, encontrado nas abelhas de Monte Pascoal, e neonicotinóides, inseticidas que matam pragas e insetos. Os dois são proibidos na Europa, mas permitidos no Brasil. Em 2019, a Agência Pública e Repórter Brasil revelaram a morte de 500 milhões de abelhas nos estados do Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina e Mato Grosso, por inseticidas.
A forma mais comum de contaminação das abelhas é durante a polinização. As abelhas que não padecem imediatamente, depois de os agrotóxicos lhes causarem paralisias e descargas elétricas, até voltam para casa, mas infectam a colmeia e todas morrem. Pesquisas também têm mostrado que as mudanças climáticas e interferências externas podem prejudicar as abelhas.
Se as abelhas morrem, a destruição pode ser ainda maior, afirma o professor Osmar Malaspina, pesquisador do Centro de Estudos de Insetos Sociais da Universidade Estadual de São Paulo. Isso sugere que borboletas e mariposas, também polinizadores, tiveram igual fim.
“Dentro da mata, não consigo calcular a morte. Espécies nativas podem estar desaparecendo. Nem dá para calcular o dano ambiental”, lamenta.
A falta de conhecimento técnico ou a escolha de ignorá-lo são problemas somados à toxicidade dos aditivos. A pulverização aérea tem sido alvo de discussão, mas não é proibida no Brasil. Quem defende sua proibição diz que ela afeta mais intensamente o ecossistema. Do outro lado, agrônomos alertam que, com acompanhamento técnico, o risco é mínimo.
O agrônomo Renato Hortélio, produtor e consultor em produção e comercialização de café, explica que as grandes vantagens da pulverização aérea para o agronegócio tem sido a agilidade na aplicação e o custo relativamente baixo – R$ 70 por hectare. “A questão é haver diálogo, para que as caixas de abelhas sejam fechadas nos momentos de pulverização, mesmo terrestres. Há uma grande desinformação quanto ao que é pulverização áerea. Mas o principal, na verdade, é seguir as regras”, comenta.
O diálogo, como se vê, nem sempre ocorre. O apicultor Joaquim Rodrigues, 43, perdeu em 2017, 100 caixas – até 10 milhões de abelhas. Em maio deste ano, 16 enxames morreram, colocados vizinhos a uma plantação de eucalipto, em Ribeira do Pombal. O apicultor não foi avisado e abriu os enxames para as abelhas seguirem suas viagens diárias. A suspeita é de que tenham sido envenenadas, mas não houve denúncia.
Quando perguntado sobre casos de desaparecimento de abelhas, Joaquim fica em silêncio para, logo depois, dizer: “Se continuar assim, abelha se transforma em peça de museu. Mas que se lembre que sem abelha não há vida”.
Empresas afirmam que produto é seguro e lamentam morte de abelhas
Basf: “A Basf não tem produtos à base de fipronil para aplicação foliar e aérea no país. Os produtos da Basf são indicados apenas para tratamento de sementes e aplicação em sulco de plantio no Brasil, o que não causa impacto para polinizadores.
Se utilizado de acordo com as instruções do rótulo da Basf e seguindo recomendações de boas práticas agrícolas, que inclui a aplicação não-foliar do inseticida, os produtos aprovados com o ingrediente ativo fipronil são seguros para os seres humanos e o meio ambiente, incluindo os polinizadores.
A Basf participa de iniciativas que promovem ações educativas e diálogo entre agricultores e apicultores, como o movimento COLMEIA VIVA® e a Associação Brasileira de Estudos sobre Abelhas (A.B.E.L.H.A), e está comprometida com os princípios do Código Internacional de Conduta sobre Manejo de Pragas realizado pela OMS / FAO, para contribuir com a longevidade dos cultivos e o legado da agricultura brasileira”.
FMC: Desde 2011, várias empresas, além da Basf, produzem e comercializam produtos à base de fipronil no Brasil. O ingrediente ativo fipronil, e os seus produtos formulados estão registrados em mais de 70 países para o uso em cerca de 100 cultivos, inclusive no Brasil, sendo uma ferramenta importante no manejo de pragas na agricultura bem como no controle de pragas em residências e/ou empresas.
A FMC, alinhada à sua visão de responsabilidade e segurança, vem esclarecer que não possui produtos à base de clomazone com registro para cultura do café. Lamentamos o ocorrido que resultou na morte das abelhas, e comunicamos que a FMC possui entre seus pilares estratégicos a sustentabilidade e a responsabilidade com o meio ambiente, por isso, apoiamos o Projeto Colmeia Viva, um movimento do setor de defensivos agrícolas para estimular a valorização da proteção racional dos cultivos, o serviço de polinização realizado pelas abelhas, a proteção da biodiversidade e o respeito à apicultura.
Nosso objetivo é sempre promover o uso correto de defensivos agrícolas na agricultura brasileira para proteger os cultivos e contribuir no direito básico de alimentação das pessoas, respeitando a apicultura, protegendo as abelhas e o meio ambiente.”