Maria Bethânia mostra em show purificador que tudo ainda arde na voz que hoje canta muito mais…
Resenha de show
Título: Maria Bethânia – Show comemorativo do documentário Fevereiros
Artista: Maria Bethânia
Local: Vivo Rio (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 10 de abril de 2022
Cotação: * * * * *
♪ Show programado para 16 de abril no Espaço das Américas, em São Paulo (SP).
♪ Quando Maria Bethânia enfatizou o verso “Hoje eu canto muito mais” no arremate de Galos, noites e quintais (1976), em número que roçou a cadência de baioque no toque da banda que acompanhava a cantora em show feito no Rio de Janeiro na noite de domingo, 10 de abril, o canto da intérprete justificou a retórica da música do compositor cearense Antonio Carlos Belchior (1946 – 2017) lançada por Jair Rodrigues (1939 – 2014).
No show em que dá voz a Belchior pela primeira vez, Bethânia cantou de fato muito mais do que vinha cantando em apresentações anteriores, desligando o piloto automático. Como se diluísse os males do “tempo negro ” mencionado na letra de Belchior, Bethânia fez show purificador que provocou efeito catártico na plateia que lotou a pista, as mesas (ao fundo) e os camarotes da casa Vivo Rio.
Fez-se a magia desde que Bethânia entrou no palco para cantar Um índio (Caetano Veloso, 1976). Diamante verdadeiro, lapidado com o tempo, a voz grave da intérprete reluziu com brilho incomum que impressionou até seguidores fiéis da artista.
Emendar Um índio com Pantanal (1990) – canção de Marcus Viana regravada pela artista para ser tema de abertura do remake da novela ruralista, ora exibida pela TV Globo – foi a deixa para a cantora adentrar as matas situadas no coração do Brasil que pariu o afro samba Yayá Massemba (Roberto Mendes e José Carlos Capinan, 2003).
Em roteiro que surpreendeu com a canção em que Belchior inventariou memórias da saga de migrante nordestino e com a lembrança do samba Mulheres do Brasil (Joyce Moreno, 1988), sem falar na inesperada abordagem de outro samba no fecho do show, o positivista Tá escrito (Xande de Pilares, Carlinhos Madureira e Gilson Bernini, 2009), Bethânia potencializou o toque político que já vinha dando em shows transmitidos virtualmente ao longo de 2021.
Sem precisar dar nome aos bois, citados pelo coro espontâneo da plateia, esse tom político ficou evidenciado com a récita de textos como Saudação à primavera (Cecília Meirelles), com o canto da Marcha da quarta-feira de cinzas (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, 1962) e até mesmo na repetição do refrão afro-brasileiro do samba Maria vai com as outras (Toquinho e Vinicius de Moraes, 1971), puxado pela banda no interlúdio entre os dois atos.
O fato de a apresentação de ontem ter sido o primeiro show solo da cantora com público presencial – antes houve o concerto em que Bethânia entrou em cena como convidada do maestro João Carlos Martins – pareceu ter contribuído para reacender a chama da intérprete.
Citando letra de O ciúme (Caetano Veloso, 1987), Bethânia mostrou que tudo ainda arde na voz que, sim, cantou muito mais ontem, no calor do reencontro com o público. Reverente, esse público – sobretudo o aglomerado na pista – colaborou para manter alta a temperatura da apresentação de uma hora e meia.
Entre eventuais novidades na voz da cantora como Meu nome é ninguém (Haroldo Barbosa e Luiz Reis, 1962), samba-canção lançado há 60 anos por Miltinho (1928 – 2018), Bethânia rebobinou grande parte do roteiro que seguiu em 12 de dezembro de 2021 no show apresentado (sem plateia) no Teatro Castro Alves, em Salvador (BA), no encerramento do 19º Festival de Música Educadora FM.
Só que tudo soou novo de novo. Porque a intérprete ardeu na fogueira da paixão pelo canto, pela Bahia natal – saudada com molejo no samba De onde eu vim (Paulo Dáfilin, 2021) – e pelo Brasil luminoso que vislumbra na poesia da Canção da manhã feliz (Luiz Reis e Haroldo Barbosa, 1962).
Tudo também soou novo de novo porque a percussionista Lan Lanh entrou na banda integrada por virtuoses do naipe do violonista João Camarero, do baixista Jorge Helder, do ritmista Marcelo Costa e do violeiro Paulo Dáfilin. Todos os músicos foram nominados por Bethânia em cena no momento em que a cantora ressaltou o “auxílio luxuoso” de Lan Lanh.
A menção especial a Lan Lanh se justificou porque, além do suingue devido nos sambas, a exuberante percussão da instrumentista acentuou a pulsão dramática de temas como Na primeira manhã (Alceu Valença, 1980) e fez a diferença nos arranjos.
Somente quem estava lá na pista, nas mesas ou nos camarotes da casa Vivo Rio na noite de 10 de fevereiro sabe a dimensão do que aconteceu em cena neste show criado com o pretexto de celebrar o documentário Fevereiros (2017), dirigido por Marcio Debellian e estreado há cinco anos em festivais.
Em abril folião, Bethânia deu alegria, caiu no samba da terra da artista, citou no bis o refrão do samba-enredo da Mangueira no Carnaval de 2022 – Angenor, José e Laurindo (Moacyr Luz, Leandro Almeida, Pedro Terra e Bruno Souza) – e purificou o ambiente com a esperança de que, sim, a primavera vai chegar, dissolvendo o mal provocado no Brasil por forças dos dias de hoje. Até porque, nesses dias de hoje, para bom entendedor, Maria Bethânia está cantando muito mais…
♪ Eis o roteiro seguido por Maria Bethânia em 10 de abril de 2022 na casa Vivo Rio, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), na estreia do show comemorativo do documentário Fevereiros:
1. Um índio (Caetano Veloso, 1976)
2. Pantanal (Marcus Viana, 1990)
3. Rosa dos ventos (Chico Buarque, 1970)
4. Yayá Massemba (Roberto Mendes e José Carlos Capinan, 2003)
5. De onde eu vim (Paulo Dáfilin, 2021)
6. Felicidade (Antônio Almeida e João de Barro, 1953)
7. Brisa (Paquito sobre poema de Manuel Bandeira, 1996)
8. Marcha da quarta-feira de cinzas (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, 1962)
9. Galos, noites e quintais (Belchior, 1976)
10. O ciúme (Caetano Veloso, 1987)
11. Na primeira manhã (Alceu Valença, 1980)
12. Balada de Gisberta (Pedro Abrunhosa, 2007)
13. Maria vai com as outras (Toquinho e Vinicius de Moraes, 1971) – refrão com a banda
14. Canção da manhã feliz (Luiz Reis e Haroldo Barbosa, 1962)
15. Alegria (Arnaldo Antunes, 1995)
16. Mulheres do Brasil (Joyce Moreno, 1988)
17. Bar da noite (Bidu Reis e Haroldo Barbosa, 1953)
18. Prudência (Tim Bernardes, 2021)
19. Negue (Adelino Moreira e Enzo Almeida Passos, 1960)
20. Lama (Aylce Chaves e Paulo Marques, 1952)
21. Meu nome é ninguém (Haroldo Barbosa e Luiz Reis, 1962)
22. Começaria tudo outra vez (Gonzaguinha, 1976)
23. Volta por cima (Paulo Vanzolini, 1962)
24. Meu amor é marinheiro (Alan Oulman sobre versos de Manuel Alegre, 1974)
25. Vento de lá (Roque Ferreira, 2007) /
26. Imbelezô (Roque Ferreira, 2004)
27. Reconvexo (Caetano Veloso, 1989) /
28. Pot-pourri de sambas de roda do Recôncavo Baiano
29. Tá escrito (Xande de Pilares, Carlinhos Madureira e Gilson Bernini, 2009)
Bis:
30. Angenor, José e Laurindo (Moacyr Luz, Leandro Almeida, Pedro Terra e Bruno Souza, 2022) – refrão
31. Ala-la-ô (Haroldo Barbosa e Nássara, 1941) /
32. A filha de Chiquita Bacana (Caetano Veloso, 1975) /
33. Chuva, suor e cerveja (Caetano Veloso, 1971) /
34. A água lava tudo (Paquito, Jorge Gonçalves e Romeu Gentil, 1955)
35. Frevo molhado (Jaime Alem, 2007)
Bis 2:
36. O que é o que é (Gonzaguinha, 1982)