La Coruña: de campeão espanhol à 3ª divisão em 20 anos
Lá pelos idos dos anos 1990 o futebol espanhol era uma febre no Brasil. Junto ao italiano, eram as ligas estrangeiras mais assistidas do lado de cá do Atlântico. Os combates entre Barcelona e Real Madrid obviamente tinham o protagonismo – realidade que não mudou com o passar das décadas. Mas, naquela época, um outro personagem chamava atenção.
O número de brasileiros era um fator interessante. Um dos craques do tetra, Bebeto passou por lá, mas gigantes como Mauro Silva e Djalminha tiveram sua contribuição para fazer do La Coruña um time que corria por fora nas brigas pelos canecos espanhóis e corações brasileiros. O ponto alto da história do clube da região da Galícia foi o título espanhol na temporada 1999/2000.
O meia Djalminha e o volante Mauro Silva foram peças fundamentais para transformar o estádio Riazor num caldeirão tão fervente que nem a proximidade da praia homônima era capaz de arrefecer. Coube ao tempo, e ao acúmulo de dívidas, gestões duvidosas e rebaixamentos esfriar tudo aquilo, e 20 anos após a sua glória máxima o Deportivo La Coruña está agora rebaixado para a Segunda División B, a terceira divisão do futebol espanhol.
História
Fundado em 1906, o Depor começou sua trajetória ganhando peso dentro de sua região, a Galícia. Assim como hoje, o futebol na Espanha tinha suas dinastias. Desde o início do século XXI, apenas em três ocasiões Barcelona ou Real Madrid não ganhou o principal torneio nacional. O Valencia levou os troféus em 2001/2002 e 2003/2004 e o Atlético de Madrid venceu em 2013/2014.
A La Liga foi fundada em 1929 e tinha como requisito mínimo para ser membro ter chegado a pelo menos uma final da Copa do Rei, feito que era exclusividade de equipes castelhanas como o Real, o Atlético e o Español de Madrid; bascos como o Athletic e Vizcaya de Bilbao e catalãs tal qual Barcelona e Espanyol. O máximo que o La Coruña tinha feito até então era chegar às quartas de final. Por isso iniciou na segundona.
O primeiro acesso veio no início dos anos 1940 e, após algumas brigas contra o rebaixamento, viveu a sua primeira era dourada com o vice-campeonato em 1949/1950, tendo como um dos destaques Luis Suárez, que futuramente brilhou no Barcelona ao lado de Evaristo de Macedo, além de ser o líder técnico da seleção espanhola na conquista de sua primeira Eurocopa em 1964.
Revelado pelo La Coruña, Luis Suárez até hoje é o único espanhol a ser premiado com a Bola de Ouro (Foto: Reproduçãoão/FC Barcelona) |
Aquele vice-campeonato foi uma glória passageira para os “blanquiazules”, que amargaram uma série de rebaixamentos nas duas décadas seguintes até viver o seu grande inferno em 1973. Foram dois rebaixamentos consecutivos: da primeira para a segunda em 1972 e dai à terceira no ano seguinte. Mesmo com o retorno imediato, o clube enfrentava uma crise financeira seríssima, que era refletida no campo.
A duras penas, o La Coruña conseguiu se manter como um personagem de meio de tabela da segundona e tentava se organizar, mas seguia uma vida de montanha-russa: se em 1986/1987 só não subiu por conta de uma derrota doída para o seu maior rival, o Celta de Vigo, na fase final da competição, no ano seguinte fugiu da terceira divisão com um golzinho chorado, nos acréscimos, contra o Racing de Santander.
O músico Chorão, do Charlie Brown Jr., acreditava num equilíbrio entre os dias de luta e os de glória. Pois após muitos anos de luta, vieram os de glória para o La Coruña. Tudo começou quando um dirigente que tinha experiência na gestão de outros esportes assumiu a presidência do clube graças a uma espécie de vacância: foram três rodadas de candidatura sem nenhum pretendente. Augusto César Lendoiro decidiu assumir a bomba e guiou o La Coruña para voos incríveis.
Primeiro ajeitou as contas. Assim, iniciou o processo de retorno à La Liga. Depois, sonhou alto junto ao técnico Arsenio Iglesias, que tinha uma filosofia de apostar em jovens jogadores. Ainda na segundona, foi semifinalista da Copa do Rei de 1988/89 e conseguiu o acesso duas temporadas depois.
Lembra que no início dos anos 1990 o Campeonato Espanhol tinha moral aqui no Brasil? Pois é. Isso significa exposição, que também pode ser traduzido em capacidade de atrair e fazer investimentos. A temporada de volta à divisão de elite quase foi frustrada, com a salvação vindo nos playoffs de rebaixamento contra o Bétis. Até que em 1992 começou a montagem da geração dourada do clube galego.
Presidente do Depor, Lendoiro era um negociador hábil. Com essa característica conseguiu levar algumas estrelas para o elenco, vencendo a cobiça de outros gigantes europeus para contratar Bebeto, ainda não campeão do mundo mas já consagrado, e o jovem volante Mauro Silva, que havia sido campeão paulista em 1990 e vice brasileiro no ano seguinte pelo Bragantino, além de ter sido premiado duas vezes com a Bola de Prata do Brasileirão pelo clube (em 1991 e 92). Reza a lenda que Lendoiro conseguiu convencer a dupla a se juntar ao Depor alegando que o clima da Galícia era parecido com o do Brasil e que por isso a adaptação seria mais fácil.
O impacto foi imediato e a data 3 de outubro de 1992 é conhecida na Galícia como o dia da fundação do Super Depor. O Real Madrid chegou ao Riazor e impôs um 2×0 logo aos 25 minutos. Mas Bebeto e cia correram atrás do prejuízo: o brasileiro marcou duas vezes e Ricardo Rocha marcou um contra que deu a vitória ao La Coruña. Menos de duas semanas mais tarde, venceram o Barcelona de Johann Cruyff – atual campeão da Champions e bicampeão espanhol. Bebeto foi o artilheiro daquela edição e Fran, um garoto levado do Fabril também em 1988, o melhor da competição que o clube encerrou em terceiro lugar e se classificou para uma competição internacional pela primeira vez: a antiga Copa da Uefa, hoje Liga Europa.
À esquerda, Mauro Silva: volante é o jogador estrangeiro com mais partidas e o terceiro com mais jogos pelo La Coruña. À direita, Bebeto passou anos como o maior artilheiro da história com clube, com 100 gols. Foi superado por Diego Tristán já no século XXI (Foto: Site Oficial Deportivo La Coruña) |
Em 1993/94, o Depor nadou de braçada e chegou à última rodada com um ponto à frente do Barcelona. Mas só empatou em 0x0 contra o Valencia, com direito a um pênalti perdido por Miroslav Dukic aos 44 do primeiro tempo. Foram 24 rodadas na liderança. Mas o Barça de Romário, artilheiro daquela edição com 30 gols, fez o seu dever de casa e levou o troféu com os mesmos 56 pontos do Depor, com vantagem nos critérios de desempate. O jogo é considerado a maior dor da história do clube.
Na briga entre melhor defesa e melhor ataque do campeonato, o ataque ganhou. O Barcelona marcou 91 gols naquela temporada. O La Coruña, por sua vez, sofreu apenas 18 nos 38 jogos de La Liga.
A temporada seguinte teve um novo vice-campeonato espanhol, desta vez para o Real Madrid. Mas veio o primeiro título nacional. O mesmo Valencia que tirou o título um ano antes foi derrotado na final da Copa do Rei por 2×1.
Donato e Bebeto com a Taça da Copa do Rei. Dupla foi vital na construção do chamado Super Depor, geração que deixou dois vices-campeonatos espanhois no La Coruña, além do troféu da acima (Foto: Reprodução/Diário Marca) |
Os encaixes da glória
Craque do penta, Rivaldo chegou ao La Coruña um pouco depois do título da Copa do Rei. O brasileiro demorou de encaixar, mas a contratação do compatriota Carlos Alberto Silva para substituir o treinador galês John Toshack – que era seu desafeto – animou o camisa 11, que terminou a temporada com 21 gols e chamou a atenção do Barcelona.
O Barça tinha perdido Ronaldo para a Inter de Milão e abriu os cofres pagando US$ 16 milhões para contratar Rivaldo naquela que foi a maior contratação feita por um clube espanhol até o momento. Com esse dinheiro, chegaram ao Depor nomes como Luizão, que não teve vida longa na Galícia, e Djalminha. Este sim, protagonista de grandes histórias.
Após a chegada de Djalminha, uma outra peça fundamental desembarcou na cidade: o técnico Javier Irureta, contratado após boa campanha à frente do rival histórico Celta de Vigo.
Irureta montou um time equilibrado: defensores consistentes, bons meias e atacantes matadores. A irreverência de Djalminha aliada à liderança de remanescentes do Super Depor como Mauro Silva, Donato e Fran deram boas armas ao treinador que tinha um jeitão conservador, mas se valeu de uma inovação tática para levantar o troféu de La Liga em 1999/2000.
Ídolo do Atlético de Madrid pela carreira como jogador, Irureta fez história também no norte da Espanha ao liderar esquadrão do La Coruña campeão de La Liga. Na imagem, treinador posa na Tribuna de Honra do antigo estádio Vicente Calderón (Foto: Divulgação/Atlético de Madrid) |
Para dar mais liberdade a Djalminha na armação, o técnico adaptou o 4-4-2 em 4-2-3-1, esquema muito funcional para as peças que tinha.
Solto para criar e chegar mais à frente, Djalminha foi fundamental em várias partidas, seja marcando gols ou servindo Roy Makaay, holandês que anotou 22 gols na campanha. Mas essa liberdade para Djalma tinha um motivo: um meio-campo forte composto por dois ótimos volantes que se completavam. Mauro Silva tinha a presença física e ótima saída pro jogo. Ao seu lado, Flávio Conceição tinha poder de marcação e um ótimo chute de fora da área.
O setor era completado por Victor Sánchez e Fran, outra peça que se juntava a Djalminha na hora de pensar o time. O veterano, no entanto, sofreu para ter continuidade e tinha em Jokanovic seu principal substituto.
O Riazor foi fundamental para aquela conquista. Olhando a frio, o La Coruña assumiu a liderança na 12ª rodada e não saiu mais. Mesmo que os momentos de transição vividos por Real Madrid e Barça tivessem ajudado, aquele Depor mostrou que tinha seu valor. No segundo turno, foram nove vitórias em dez jogos em casa, com direito a um 5×2 em cima do Real com baile de Djalminha, que deu lambreta para cima de Raúl e ainda fez gol de falta.
Se em casa era tudo lindo, fora de casa o bicho pegava. Até a 29ª rodada o time de Irureta havia vencido todos os jogos no Riazor e perdido absolutamente todos fora. O filme de 1994 parecia que ia se repetir quando, na antepenúltima rodada, o Barça ficou a três pontos da liderança na última rodada. Bastava um empate para o título.
Que veio: o volante Donato (brasileiro naturalizado espanhol) e Makaay marcaram os gols da vitória do título, por 2×0, em cima do Espanyol. La Coruña se tornava a cidade menos populosa a vencer uma edição de La Liga com seus 180 mil habitantes. Um marco na história do badalado futebol espanhol.
Djalminha e Mauro Silva carregam o troféu de Campeão espanhol (Foto: AFP) |
Bons momentos e queda
Após o título em 2000, o La Coruña escreveu outros capítulos bonitos em sua história. Além de boas campanhas no Espanhol, como o vice-campeonato da temporada seguinte, algumas partidas na Liga dos Campeões chamaram atenção.
A principal delas em 2003/04, quando reverteu uma goleada sofrida por 4×1 contra o Milan na Itália e aplicou 4×0 dentro do Riazor para avançar às quartas de final da competição, caindo para o futuro campeão Porto, treinado por José Mourinho.
Aos poucos, no entanto, o elenco vencedor foi se desfazendo. Algumas peças foram vendidas, outros caíram de produção, alguns penduraram as chuteiras. O próprio técnico Irureta se despediu do clube após um 8º lugar no Espanhol em 2004/05. A distância para equipes como Real, Barcelona e Valencia começou a surgir novamente e as contas não fechavam mais.
Jogadores do La Coruña se abraçam após virada história pra cima do Milan na Liga dos Campeões (Foto: AFP) |
A Era Lendoiro acabou em 2014 após 25 anos de boas histórias, mas com o clube já afundado em dívidas. Deixou de ser um dos brigadores por título para viver as gangorras a que se acostumou na metade do século passado. Desde o rebaixamento em 2011, o primeiro em 20 anos, foram três quedas para a segundona, três acessos para La Liga e no último mês veio uma queda para a terceira divisão que não ocorria desde 1973.
Isso poderia ter acontecido antes, já que no último ano de Lendoiro à frente do Depor, a tragédia só não aconteceu porque conseguiu quitar de última hora 10 milhões de euros em débitos com jogadores.
Dono de 6% das ações do clube, Tino Fernández assumiu o Deportivo e conseguiu fazer uma gestão que reduziu a dívida de 160 para 80 milhões de euros. Ele deixou o clube no ano passado, pouco mais de três meses após ser eleito para mais cinco anos de mandato. O motivo? Resultados ruins e problemas com a torcida.
Augusto César Lendoiro foi presidente do Depor durante 25 anos e levou o clube às suas maiores glórias esportivas. Deixou o cargo em 2014 com a instituição afundada em dívidas (Foto: Divulgação/ RCD La Coruña) |
Os problemas seguiam se acumulando: trocas de técnico, elencos ruins e a terceira divisão se aproximou à galope e dentro do campo. Na sexta-feira passada (7), o time jogou já rebaixado contra o Fuenlabrada pela última rodada da segunda divisão. O jogo foi cercado de polêmicas, já que havia sido adiado por conta dos casos de jogadores contaminados pela covid-19 na equipe adversária.
No final das contas, duas equipes remendadas foram a campo: o Deportivo já de férias e o Fuenlabrada com apenas sete jogadores profissionais disponíveis. O Depor venceu por 2×1 graças a uma virada-relâmpago protagonizada por Claudio Beauvue, que marou aos 39 e aos 50 do segundo tempo. O Elche foi quem se deu bem e, graças ao tropeço do concorrente, se classificou aos playoffs de acesso para La Liga.
A vitória não serviu de muita coisa para o Deportivo. Muito pelo contrário, as dificuldades que o clube comandado pelo presidente Fernando Vidal têm em seu horizonte próximo são de criar dor de cabeça a qualquer um. A terceira divisão espanhola é semiprofissional e isso oferece menor capacidade de investimento e saúde financeira para uma organização afundada em dívidas. Dono de algumas das histórias mais interessantes do futebol espanhol, o Depor vê a sua sobrevivência cada dia mais em xeque.