Fiéis furam isolamento para enfeitar casas de vizinhos no Domingo de Ramos
Entrelaçada na grade cinza, um galho de folha de palmeira lembrou o Domingo de Ramos (5). Atrás dela, América Reis, 83 anos, observava o vazio da Rua Araújo Bucão, no Uruguai. A vizinhança, a dois quilômetros da Igreja do Bonfim, de onde sai uma das principais procissões que marca o início da Semana Santa, em Salvador, costuma ficar cheia. “Chega a arrepiar”, disse a senhora. Durante o isolamento imposto pelo novo coronavírus, católicos rezaram em confinamento e chegaram a distribuir, de surpresa, ramos verdes pela janela dos vizinhos.
Os galhos de folha representam a celebração de fiéis pela chegada de Jesus, segundo o catolicismo, montando num jegue, a Jerusalém. Foram necessários 20 minutos até a reportagem encontrar o enfeite na casa térrea de Dona América. As portas e janelas não estavam enfeitadas como costumam ficar. Em outras sacadas de prédios e casas, os enfeites verdes foram colocados, mas sem ninguém à vista.
“Se Deus me ouvir, isso tudo vai acabar muito mais cedo do que a gente pensa. Que esse vírus volte para o nada de onde veio”, torceu a aposentada.
O raminho verde foi colocado na porta da senhora por um vizinho e, em cima da televisão, ela colocou outra folha, arrancada do próprio jardim pela manhã. Não há registros na história em que a tradição de Ramos não tenha sido vivida nas ruas da cidade. Tudo indica que foi a primeira vez, desde a chegada dos portugueses a Salvador, em 1549.
“Essa é uma coisa secular, embora a gente não possa dizer exatamente como ocorria. As pessoas já estavam com ramos, segurando coisas simples, para celebrar”, explicou o doutor em Teologia Antônio Magalhães. Na época da Gripe Espanhola, em 1918, ele acredita que as atitudes tenham sido diferentes, até porque não havia “o temor que talvez exista hoje” – devido ao avanço das fontes de informação, principalmente.
Dona América, isolada com a filha há duas semanas, assistiu à missa sentada no sofá, pela TV. A folha colocada em cima do aparelho foi benzida na base da fé, com a palavra do Padre Marcelo Rossi, em missa transmitida ao vivo. Desde a juventude, em Cruz das Almas, a 150 quilômetros da capital baiana, ela participa do Domingo de Ramos. Ainda criança, lembra de percorrer as ruas da cidade com folhagens às mãos.
Dona América tenta, confinada, manter tradição do Domingo de Ramos (Foto: Thiago Caldas/CORREIO) |
A Arquidiocese de Salvador havia solicitado, na semana passada, às paroquias que realizassem a programação da Semana Santa sem a presença dos fiéis. Algumas igrejas decidiram, então, transmitir a missa por transmissões ao vivo nas redes sociais. A Paróquia São Francisco de Assis, Saramandaia, foi uma delas. Em quase duas horas, 280 fiéis participaram da missa. Respondiam à palavra do padre Jonathan de Jesus, com mensagens e curtidas.
“Essa foi a única forma de estarmos conectados. Claro que não tira o sofrimento, mas ameniza. Nós estamos observando isso também como um ato de amor a Deus e aos irmãos. É preciso ficar em casa”, contou o pároco, depois da transmissão.
Na Basílica de São Pedro, no Vaticano, o papa Francisco também rezou a missa apenas com a presença de um pequeno grupo religioso. A maior autoridade da Igreja Católica disse, numa mensagem de esperança: “Quando nos sentimos entre uma rocha e um lugar difícil, quando nos encontramos num impasse, sem luz e sem escapatória, quando parece que nem mesmo Deus responde, lembremos que não estamos sozinhos”.
Surpresa para os vizinhos
Às 21h do último sábado (4), Sônia Paixão, 75, saiu de casa, acompanhada da neta, Sara, e da filha, Maria, para surpreender duas amigas vizinhas. Ela e Sara tinham preparado trancinhas em folhas de palmeiras e decidiram enfeitar a casa de Raimundo e Zefa, também católicas, em Feira de Santana. Saíram no silêncio da noite, com a rua vazia, equipadas com barbante, banco, tesoura e o ramo. Apenas uma viatura policial passou, durante o trajeto.
“Fizemos escondidas. Três meliantes”, brincou Sara.
Avó, filha e neta estão isoladas e só romperam o confinamento por uma razão santa, na crença de Sônia, e, ainda assim, porque não havia ninguém na rua e o trajeto era curto. “Amarramos correndo no portão de fora e voltamos”, contou Sara. Sônia assistiu à missa das 8h30 da Paróquia Santo Antônio pelas redes sociais. Na avaliação do teólogo Antônio Magalhães, a mensagem do Domingo de Ramos é justamente o “triunfo de um profeta que se baseou em fazer bem à maioria”.
Ao pendurar os ramos trançados nos portões das amigas, foi o que fez Sônia. Na cidade de Catu, Eron Ribeiro, 74, também encontrou uma forma de cumprir a quaresma – período litúrgico iniciado na quarta-feira de cinzas e que antecede a Páscoa – em meio à quarentena. Na parede externa de casa, pendurou uma cesta com ramos colhidos do quintal da cunhada, pela filha Ane, e benzidos por uma missa exibida pela televisão.
“Benzi as folhas pela TV mesmo. O mistério da fé você não pode ver mesmo”, justificou o aposentado.
Até então, desde a infância como coroinha da Igreja Nossa Senhora Santana, costumava confraternizar com a família, depois das procissões, em casa. Virou adulto, manteve a tradição. A casa onde mora com a esposa, Lúcia, é um ponto de encontro depois dos ritos. No almoço, servem pratos como galinha ensopada.
Eron encheu caixa com ramos para celebrar o início da Semana Santana (Foto: Arquivo Pessoal/Eron Ribeiro) |
Dessa vez, depois da missa, balançaram o ramo de folhas rapidamente, da porta de casa, e voltaram para a sala de estar. “Que o balançar dos ramos leve o coronavírus para fora”, profetizou.
Sem ramos
No isolamento, faltaram até ramos. “Estou sentido muita falta [da rua cheia]. Já fiz oração pedindo ao nosso pai que o homem crie uma vacina para tirar a população do caos”, desejou Sora de Oliveira Costa, 60. Ela está isolada há duas semanas, com o filho – o marido ainda precisa sair para trabalhar. Na janela do apartamento, no Campo Grande, não conseguiu balançar sequer um galho de planta.
“Menina, o coronavírus deixou a gente pegar algum ramo?”, lamentou.
O endereço de Sora é o mesmo há 10 anos e é ali que os familiares – vindo dos bairros do IAPI e de Ondina – se reúnem para ver uma procissão passar. O ritual começa às 5h, com o barulho dos primeiros fiéis, e os parentes chegam entre 6h30 e 7h. “Tenho dois janelões imensos, é como se fosse uma camarote”. Depois, reúnem-se para um almoço.
“Nada é por acaso, que dessa lição tiremos coisas boas e possamos terminar isso melhores”, falou, como se fizesse um pedido.
Mesmo sem ramos, nem todos os familiares, Sora acordou às 6h, cumpriu as orações e manteve a tradição de uma vida. A tentativa de reinventar, obrigatoriamente, a forma de celebrar o início da Semana Santana, pode até fortalecer a tradição, opina o teólogo Antônio Magalhães. “A mensagem tem a ver com simplicidade, simbolicamente temos um profeta [Jesus] que trouxe justiça aos pobres. Esse é um singificado forte: a justiça”.
Durante a atual pandemia, justiça é o mínimo que todos esperam – principalmente os mais vulneráveis, como aqueles que saudaram Jesus em sua entrada triunfante em Jerusalém que entraria para a história.