Dia do Índio: aldeias da Bahia suspendem festas e relatam fome em meio à pandemia

Frente da oca da pajé Iara, onde comercializa medicamentos naturais

Se não fosse pela pandemia do novo coronavírus, este 19 de abril seria de ritual festivo nas aldeias indígenas da Bahia. Nas cidades de Itambé e Coroa Vermelha, ambas no Sul do estado, os caciques decidiram fechar as entradas das comunidades e suspender as torés, as danças em celebração à vida. Localizada na região tida como ‘Costa do Descobrimento’, Coroa Vermelha ainda não tem casos confirmados da doença, mas fica entre Santa Cruz Cabrália e Porto Seguro, que já somam 19 pessoas infectadas. Em meio ao cenário, lideranças indígenas denunciam fome e negligência da Fundação Nacional do Índio (Funai).

Comandante das aldeias do Alto do Juriti e Juriti Alto da Boa Vista, em Vitória da Conquista e Itambé, o Cacique Curiango, 64, conta que sua comunidade ainda tenta se refazer do último despejo e ataque por disputa de terras no fim do ano passado. Recém migrados para Itambé, onde conseguiram uma área para instalação de barracos, ele conta que os índios não tiveram nem tempo de pensar em celebração. 

“Ficamos divididos, mas até agora pelo menos estamos felizes e sadios. Em várias aldeias hoje a gente estaria fazendo um movimento de passeata, um desfile bonito, uma toré para se alegrar dentro da aldeia, mas não estamos comemorando porque somos um aldeia nova, estamos nos organizando. Só que com esse problema do coronavírus nós não íamos fazer de qualquer maneira”, conta o cacique, pertencente à etnia tupinambá.

Segundo ele, cerca de 27 famílias já conseguiram se instalar em Itambé, onde também há outras aldeias. Em Vitória da Conquista restaram 59 famílias tupinambás que tentam se mudar para o novo território. O cacique acrescenta que parte destas pessoas são cadastradas no Bolsa Família e até souberam que teriam direito ao auxílio de R$ 600, mas ainda não entenderam como ter acesso ao recurso. 

“Da nossa turma eu sei que ninguém recebeu, mas vamos correr atrás. É uma coisa fora de série, muito esquisita tudo. A gente vêm as coisas acontecendo, já sabemos de parentes em aldeias do Amazonas, já morreu gente… A gente fica preocupado e pede a Tupã para entrar na frente e rebater tudo o que for ruim”, desabafou. 

A Funai lamentou, nesta sexta-feira (17), a morte por coronavírus do indígena Tuxaua da aldeia São Benedito, na terra indígena Andirá/Maraú, no Amazonas. Segundo a fundação, ele tinha 67 anos e tinha recebido a visita de um filho que reside em Salvador, e que chegou ao local apresentando tosse. Além do indígena Tuxaua, morreram também no Amazonas um homem da etnia Tikuna, de 78 anos, e uma mulher Kokama, de 44 anos. No Acre foi registrada a morte de um índio Yanomani de apenas 15 anos.

‘Costa do Descobrimento do Brasil’

Em Coroa Vermelha, a pajé Maria das Graças, a Iara, 60, da aldeia pataxó Nova Coroa conta que a situação por lá está “pela misericórdia”. Administradora de uma farmácia natural em Porto Seguro, a 17 Km, ela conta que a aldeia Nova Coroa era aberta à visitação e muitas famílias que viviam do artesanato vendido aos turistas já estão passando fome.

Localizada perto do mar, a aldeia possuía uma horta horta que era cultivada pela pajé, mas acabou sendo destruída pelo volume das chuvas. A entrada da terra indígena foi bloqueada com cordas para impedir o acesso de forasteiros e proteger a comunidade da contaminação.

“Fechamos as ocas todas e estamos sofrendo. Não recebemos nenhuma cesta básica. Eu tenho meu menino que tem uma criancinha e está chovendo muito. Ficamos com medo. A gente não pode sair, ninguém tem um carro, um ônibus para resolver as coisas. Não chegou ninguém para conversar com a gente, vi na televisão que tem que ficar intocado, mas tem gente passando fome”, relata a pajé, de origem tupinambá, mas liderando espiritualmente 202 famílias pataxós.

Pajé Iara, da aldeia Nova Coroa, em Coroa Vermelha (Foto: Arquivo pessoal)

Com um aporte de R$ 10,8 milhões para ações de combate à covid-19 em terras e reservas indígenas, a Funai informou que tem um orçamento de R$ 379,4 mil para o Sul da Bahia, onde há 12 terras indígenas. Segundo a fundação, o recurso é previsto para a compra emergencial de alimentos e outras ações, como aquisição de veículos e embarcações para ter acesso aos locais. 

Fechada no Dia do Índio, a coordenação regional indígena do Sul da Bahia não respondeu aos questionamentos do CORREIO quanto à aplicação do recurso na região e direcionou a demanda para a assessoria de comunicação da Funai. A reportagem, então, tentou contato com a assessoria da fundação, que, até a publicação desta matéria, também não deu devolutiva às perguntas sobre a distribuição de cestas básicas.

Em detalhamento anterior, a entidade disse que distribuiria 308 mil cestas pelo país, que beneficiariam cerca de 154 mil famílias indígenas nas próximas semanas. Segundo a Funai, a região Nordeste é que terá o maior número de beneficiados (47.852). Essa ação foi possibilitada por iniciativa do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), chefiado pela ministra Damares Alves, mãe adotiva de uma jovem indígena da etnia Karamayurá.

Resistência

De acordo com dados disponíveis no site da Funai, a Bahia tem 31 terras indígenas de diferentes etnias, a maior parte delas de pataxós e tuxás. No último censo populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/2010), cerca de 60,1 mil índios viviam no estado. A Funai estima que existam aproximadamente um milhão de indígenas no país e mais de 200 milhões deles vivem no Nordeste, que só fica atrás do Norte em número dessa população.

Nas redes sociais, o Cacique Aruã Pataxó, líder da aldeia Coroa Vermelha, deixou uma reflexão destinada aos povos indígenas. “Índio é sinônimo de resistência, de força, de coragem. Quero dizer a todos os parentes da Bahia e do Brasil que, para a gente garantir nossos direitos constitucionais, precisamos lutar sempre e desistir jamais. Os nossos anciães já passaram, já fizeram a nossa luta e agora temos a nova geração. O índio não pode acabar”, declarou.