Dia do Gordo: Especialistas e artistas reivindicam acessibilidade e saúde
Comemorado nesta quinta-feira (10), o Dia do Gordo, também conhecido como Dia de Luta Contra a Gordofobia ou Dia de Visibilidade à Luta Antigordofobia, busca conscientizar a sociedade sobre a importância do respeito às pessoas gordas. Mesmo sendo maioria na população brasileira – 56%, segundo o Ministério da Saúde – gordos são negligenciados e têm direitos e acessos negados diariamente na sociedade.
O CORREIO conversou com ativistas e pesquisadoras para entender quais são, atualmente, as principais pautas do movimento antigordofobia, que luta por equidade e pelo fim do preconceito contra pessoas gordas.
Mas antes, vale ressaltar o papel decisivo que as militantes da capital baiana tiveram para que a data seja o que é hoje. Apesar de não se saber ao certo a origem da comemoração, que possivelmente foi importada dos Estados Unidos (EUA), o dia 10 de setembro já foi utilizado com conotações pejorativas. O Movimento Vai Ter Gorda, de Salvador, foi responsável por ressignificar a data no Brasil.
“O Dia do Gordo sempre foi visto de maneira ‘doentia’ – ridicularizando as pessoas gordas e fazendo alusão à coisas ruins. Pessoas gordas eram colocadas como a algo cômico, engraçado. Por sentir falta da representação de pessoas gordas em cenas de protagonismo, começamos a refletir sobre a necessidade de um novo olhar sobre o Dia do Gordo, fazendo ações de valorização do corpo gordo em diversos aspectos sociais. Colocamos o dia 10 de setembro como o Dia do Gordo de forma positiva. A ideia é levar para sociedade a conscientização de uma data de afirmação e resistência”, explica a ativista Adriana Santos, coordenadora do Movimento.
As baianas, então, propuseram o Dia de Combate à Gordofobia. A primeira ação trazendo esse novo olhar para o dia 10 de setembro aconteceu em 2017, quando ocorreu uma sessão especial com debate e homenagens no Plenário Cosme de Farias, da Câmara Municipal de Salvador. Naquela ocasião, inclusive, a repórter que vos escreve recebeu uma condecoração pelo trabalho enquanto jornalista, editora da PLUS – primeira revista para gordas do país – e militante antigordofobia. Outra sessão do mesmo tipo aconteceu em 2019.
Sessão especial marcou o Dia de Luta contra a Gordofobia em 2019 (Foto: Valdemiro Lopes/CMS/Divulgação) |
Há cerca de um ano, o Vai Ter Gorda conseguiu com que o projeto de lei (PL) que pleiteia a oficialização da data nos calendários municipal e estadual entrasse em tramitação na Câmara Municipal de Salvador e na Assembleia Legislativa do Estado da Bahia (Alba). “É lamentável que ainda não tenha sido aprovado em nenhuma das instâncias, porque a gente vive em uma cidade e em um estado onde a quantidade de pessoas gordas e fora do padrão é bem representativa. A gente precisa discutir sobre isso, levar notoriedade para que nossas demandas sejam pautadas dentro do legislativo e para que haja um olhar mais acolhedor com as pessoas gordas”, completa Adriana, que também foi a primeira Miss Plus Size da Bahia.
Adriana discute o preconceito nas ruas e propõe dialoga diretamente com gestores públicos |
Salvador é a primeira cidade a propor leis de conscientização e políticas públicas nesse sentido e está inspirando o restante do país. “Vejo avanços que estamos pautando e a força que a causa vem ganhando e se espalhando pelo Brasil. Claro que ainda há muito o que caminhar no âmbito da política. Acredito que toda essa demora para que haja a sanção se deve à estigmatização e à patologização do corpo gordo”, completa.
Patologização
Mas o que significa patologizar corpos gordos? A filósofa e artista Malu Jimenez, gorda, feminista e doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), responde: “Significa associar todos todos os corpes gordes como doentes, já que associam esse corpo à doença – nesse caso, a “obesidade”. Nós, pesquisadores dos Estudos do Corpo propomos uma revisão desse olhar patologizador desses corpos, porque é um dos pilares do estigma da gordofobia, preconceito que é estrutural, institucionalizado e está em todos os lugares e discursos em nossa sociedade. Ou seja, todos somos gordofóbicos, inclusive eu, que estudo o tema há cinco anos”.
Se em 2015 – quando o termo gordofobia se popularizou sobretudo por conta do feminismo negro, das manifestações nas ruas e, é claro, das redes socias – muitas pautas das militância giravam em torno de uma moda mais inclusiva e de respeito, hoje esses assuntos permanecem, mas existe uma foco ainda maior para acessos e direitos e para a despatologização do corpo gordo na sociedade.
“Patologizar o corpo gordo é desumanizar essas pessoas, tirar direitos básicos delas, como de entrar em cadeiras, macas de hospitais, transportes públicos, emprego, etc. É privá-los, inclusive, de falar sobre si mesmos e de buscar saúde”, resume a pesquisadora Malu Jimenez.
Ativista e artista, Malu Jimenez é especialista em gordofobia (Foto: Acervo Pessoal) |
Malu é autora do livro “Lute como uma gorda: Gordofobia, resistências e ativismos” (Editora Philos), adaptação de sua tese de doutorado, que entrará em pré-venda a partir do dia 15 de setembro. Também fundou Grupo de Estudos Transdisciplinares do Corpo Gordo no Brasil e comanda o projeto Lute como uma gorda (@estudosdocorpogordo, no Instagram).
Gordofobia médica
Essa negligência na área da saúde, aliás, é algo muito relatado nos últimos anos por diversas pessoas através da hashtag #gordofobiamédica nas redes sociais. É também uma das principais pautas dos militantes antigordofobia atualmente. Além da falta de aparelhos e objetos acessíveis para pessoas gordas, há muitos relatos de descaso dos próprios profissionais de saúde, sobretudo médicos, o que acaba gerando consequências graves na vida de uma pessoa gorda, inclusive um ciclo de não-cuidado.
“Propaga-se erroneamente que pessoas gordas são doentes, no entanto, a cada vez que essas pessoas vão ao médico, seja por qual motivo for, são tolhidas, primeiro porque a balança não as aguenta, segundo porque os médicos oferecem diagnósticos sem qualquer tipo de exame, baseados apenas no tamanho do corpo e no olhar e, ainda mais triste e grave, porque os equipamentos não suportam os pesos e corpos e elas são encaminhadas a hospitais veterinários para não morrer. O auge da desumanização”, pontua a ativista Jéssica Balbino (@jessicabalbino_), que é mestre em comunicação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Para a ativista, existe uma certa hipocrisia de algumas pessoas, que muitas vezes ‘fiscalizam’ pessoas gordas e seus hábitos, mas não olham para o próprio umbigo. Falta empatia, ainda mais que, segundo um estudo publicado pela revista Psychological Science, a gordofobia aumenta o risco de morte em 60%.
“No fundo, ninguém está preocupado com a saúde ninguém. Se estivessem, doariam sangue, afinal, os hemocentros estão com os estoques baixíssimos, sobretudo durante a pandemia”, acrescenta.
A militante e jogadora de basquete amadora Ellen Valias (@atleta_de_peso) concorda e crava que “a área da saúde não se preocupa de verdade com a saúde da pessoa gorda”. “Não existe interesse da medicina em cuidar de fato do corpo gordo. A gente é taxado como doente e pronto, acabou. É muito importante parar de chamar as pessoas gordas de obesas e desconstruír esse estereótipo do corpo gordo ser doença (despatologizar). É algo bem complicado. Não tratam a gente como ser humano. Não veem a gente como pessoas que têm a dignidade de cuidar da saúde sem ser ridiculado pelo peso. O mínimo que a gente deveria ter é o direito de tratar a saúde sem ser negligenciado. É como se o corpo gordo não devesse existir. A gordofobia é massacrante”, desabafa.
Ellen é apaixonada por basquete desde pequena (Foto: Reprodução/Instagram) |
Atividades físicas
Outro direito que é negado às pessoas gordas, comenta Ellen, é o de fazer atividade física. Já na infância, crianças gordas e consideradas fora do padrão sofrem preconceito e recebem a mensagem da sociedade de que seus corpos não são capazes. “Já nessa fase, você já começa a entender que o seu corpo não é válido. Você é ridicularizado, não é escolhido para os times. Se for jogar futebol, te colocam no gol. Meninos gordos não ficam sem camisa porque têm os peitos maiores do que os dos amigos e são ridicularizados. Isso faz com que a criança entre em pânico e comece a não querer fazer aula de educação física e invente desculpas para fugir desse ambiente gordofóbico. Isso gera um estresse muito grande na criança”, avalia Ellen.
Como consequência desse preconceito na infância, muitos acabam desenvolvendo uma relação problemática com a atividade física. “Você não vai gostar se não te acolhe. Após o sofrimento da infância, a atividade física é apresentada na adolescência e na fase adulta como sinônimo de emagrecimento, estética, como punição. As motivações são erradas devido a toda essa indústria do emagrecimento, beleza e estética. E assim se perde a verdadeira essência do esporte e do exercício físico, que é o bem-estar, além da saúde mental”, pontua a militante.
Por isso, muitas pessoas gordas internalizam que não gostam de atividade física, acredita. “Se acham culpadas, relaxadas, mas não são. A atividade física é negada para nós. Fora a acessibilidade de roupas, que a gente não tem. Muitas vezes eu ia jogar e o uniforme não servia, minha mãe tinha que remendar. Até hoje eu vou jogar e levo uma regata. Quando eu jogava, eu nunca estava 100%. Eu ficava preocupada se meu short ia rasgar, se meu top ia segurar os meus peitos”, lembra ela, que é também fundadora do projeto Rachão Basquete Feminino, que promove a ocupação de mulheres em quadras públicas de São Paulo.
Ainda nas quadras, Ellen revela que ficava com medo até de cair durante as partidas e das pessoas falarem que era porque ela é gorda. “A gordofobia faz isso: ela constrange e tira a humanidade. A gente precisa construír uma nova relação com a atividade física e esse é o motivo que eu compartilho minha vivência na internet. Preciso contar para pessoas gordas iguais a mim que elas não são culpadas. Precisamos tirar essa culpa das costas e tentar construír uma nova relação com a atividade física”, indica.
Mais direitos negados
Nova relação essa que é bem difícil de ser alcançada, ainda mais em uma sociedade na qual pessoas gordas precisam justificar a própria existência a todo momento, explicando o porquê ‘merecem’ estar vivas. “São pessoas que têm seus direitos negados e são desumanizadas, a começar pelos espaços em que não podem ocupar justamente por não caber. O ir e vir das pessoas gordas é limitado, uma vez que elas não cabem em catracas (de ônibus, trem, metrô, banco, etc), em bancos e cadeiras de espaços públicos e de uso comum e de serviços e, pessoas gordas não são contratadas no mercado de trabalho e sofrem limitações e têm os direitos tolhidos, principalmente na saúde, que é o mais grave”, considera Jéssica, que também é artista e produtora cultural.
Jéssica Balbino também criou o projeto Margens que atua na valorização das mulheres na literatura marginal, periférica, saraus e slams no Brasil (Foto: Acervo Pessoal) |
“É importante falar que a gente não tem que ficar dando satisfação da nossa vida. O gordo tem que ser respeitado estando saudável ou não. A saúde é nossa e quem cuida da nossa saúde é a gente”, completa a atleta Ellen.
Ainda entre os acessos negados à essas pessoas, Jéssica cita o mercado de trabalho. Uma pesquisa do site Catho, de divulgação de vagas de emprego, revela que de 31 mil presidentes e diretores de grandes organizações entrevistados, 65% não contratariam pessoas gordas. Além disso, a mesma pesquisa aponta que pessoas gordas ganham menos do que pessoas magras.
“Também às pessoas gordas é negado o afeto. São corpos sempre muito desejados, porém, nunca assumidos, então, pessoas gordas são destinadas aos relacionamentos secretos, às perversões, ao que ‘não pode se tornar público’, ficando invisibilizadas afetivamente”, lamenta a ativista e artista.
Todo esse preconceito fica ainda mais evidente quando existe a questão racial. “É importante falar sobre a racialização, porque esse marcador torna tudo mais difícil. Sou gorda e preta e sinto isso na pele”, comenta Ellen Valias. Alguns estudos mais atuais sobre o tema, inclusive, defendem que a gordofobia e o racismo têm a mesma raiz. O conceito de interseccionalidade, que inclui o estudo da intersecção de sistemas relacionados de opressão, também tem sido muito abordado nas rodas de discussão.
Estereótipos
Falar em visibilidade à pauta antigordofóbica é também falar da representação midiática dos corpos gordos e dos estereótipos reproduzidos em todos os meios de comunicação que precisam ser desconstruídos. É o que ressalta a pesquisadora do tema, doutora em Comunicação, Agnes Arruda (@tamanhoggrande).
Além da presença quase nula de referências positivas, quando uma pessoa gorda é retratada pela mídia, via de regra, é de forma estereotipada, explica: “Nesse sistema, a pessoa gorda é impedida de existir por si só. Atrelada a ela, vem sempre uma característica”, continua. A que mais nos habituamos a ver é a da gorda engraçada, seja porque está designado a essa pessoa fazer alguma palhaçada ou simplesmente porque seu corpo, como ele se apresenta e se movimenta, é considerado engraçado”.
A característica, que parece positiva, atua dentro de um sistema de compensação que retroage no pensamento social. “Já que você é gorda, que seja ao menos engraçada”, explica a pesquisadora. “É o que acontece também com a pessoa gorda que é sexy ou com o estereótipo da gorda inteligente, reproduzido à exaustão”.
Agnes Arruda, autora de tese sobre gordofobia, lança luz sobre esse preconceito e a relação com a mídia |
Outros estereótipos que essas pessoas são submetidas são o da preguiça e o da falta de cuidados básicos com a higiene. “O preconceito faz com se presuma que quem é gordo só o é porque fica em casa o dia inteiro, comendo o tempo todo, sem interesse em praticar um exercício físico e desprovido de qualquer vaidade. Tal presunção está associada com a falta do autocuidado, levando então às questões de higiene”, comenta Agnes.
Autora da tese O Peso e a Mídia, Arruda alerta justamente ao fato de que o comportamento social reproduzido pela mídia com os estereótipos gordofóbicos não somente contribui para a perpetuação do preconceito como também estimula novas formas de hostilização aos corpos gordos, em um ciclo de ação e retroação. “São duas faces da mesma moeda e que precisam ser problematizadas”.
*A jornalista é militante, gorda e editora da PLUS, primeira revista para gordas do país