'Como escola especial atrasou desenvolvimento de meu filho com autismo'
Advogada relata história do filho, que hoje estuda em escola regular. Na última semana, assunto se tornou alvo de discussões, após decreto de Bolsonaro. Advogada Camilla Varella com o filho caçula, Luiz Antônio, de 12 anos; para ela, escola especial não ajudou filho com autismo
Arquivo Pessoal
Quando matriculou o filho em uma escola especial, a advogada Camilla Varella, de 46 anos, acreditava que havia encontrado a melhor forma para que ele pudesse se desenvolver. Um ano e meio depois, ela percebeu que se equivocou. “Ele não evoluiu nada”, relata à BBC News Brasil.
Após a situação, ela decidiu matriculá-lo no ensino regular e considera que o filho, que tem autismo moderado, tem um bom desenvolvimento. “Hoje, sinto que ele é incluso”, diz.
A experiência que Camilla viveu com o filho se tornou uma lembrança frequente para ela desde a semana passada, após a publicação da Política Nacional de Educação Especial (PNEE), criada por decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro.
Especialistas apontam que a PNEE, publicada em 1º de outubro, incentiva que alunos com deficiência sejam levados a escolas ou salas especiais. A medida é classificada por estudiosos como um retrocesso na educação inclusiva.
Um projeto de lei já foi apresentado no Senado para anular os efeitos do decreto de Bolsonaro.
Especialistas criticam mudança na política do governo para alunos com deficiência
Na PNEE de 2008, a mais recente antes da assinada na semana passada, o principal foco era a matrícula de alunos com deficiências em turmas regulares, com apoio complementar especializado quando necessário.
“Hoje, a preferência para crianças com deficiência sempre é a escola comum. Porém, isso pode mudar com a alteração do decreto, que é uma forma de autorizar a segregação dessas crianças em salas ou escolas especiais”, diz Luiza Correa, uma das coordenadoras do Instituto Rodrigo Mendes, que atua na busca por inserção de pessoas com deficiência no ensino regular.
Após a publicação do decreto de Bolsonaro sobre o ensino especial, diversos pais foram às redes sociais para criticar a medida. Muitos usaram a hashtag “Escola especial não é inclusiva”.
Segundo o Censo Escolar 2019 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), há 1.250.967 estudantes com deficiência na Educação Básica no Brasil. Desses, 87% estão em escolas regulares e em classes comuns, enquanto 13% estão em escolas ou classes especiais. Os dados representam um importante avanço na inclusão, em comparação a anos anteriores.
Apesar das críticas, o Ministério da Educação argumenta, em nota à BBC News Brasil, que a PNEE de Bolsonaro é positiva, pois tem o objetivo de ampliar a área de educação especial, por meio de escolas e classes especiais, além das escolas regulares inclusivas.
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A busca pela inclusão
Assim como outros pais, Camilla Varella também classificou a PNEE de Bolsonaro como um retrocesso.
Por ter um filho com autismo moderado — transtorno caracterizado por uma desordem complexa do desenvolvimento cerebral —, Camilla vivenciou as dificuldades relacionadas à inclusão escolar.
Luiz Antônio, o filho caçula dela, foi diagnosticado com autismo aos dois anos e meio. Pouco depois, ele começou a estudar em uma escola regular em São Paulo (SP), cidade em que a família mora.
A mãe considerava que ele pudesse se desenvolver na unidade de ensino, por considerar que o contato com outras crianças da idade dele seria fundamental para o garoto, pois uma das características do autismo é a dificuldade na socialização e comunicação.
A advogada relata que após o filho passar cerca de um ano na escola, a diretora do local informou que o garoto estava “causando constrangimento”, em razão de seu comportamento diferente das outras crianças. “Eu senti o preconceito na pele. Simplesmente o retirei daquela escola e procurei uma especial”, conta Camilla.
Quando filho era menor, Camilla tentou colocá-lo em escola especial, mas ela relata que notou que o filho não evoluiu com a experiência
Arquivo pessoal
Na escola especial, segundo a advogada, Luiz Antônio regrediu. “Foi muito ruim, porque ele não convivia com crianças com desenvolvimento considerado normal. O autismo dele ficou mais severo, porque ele pegava os mesmos comportamentos dos outros. Era uma unidade de ensino pouco lúdica, focada mais nos tratamentos das crianças”, detalha a mãe do garoto.
Ela conta que tirou o filho da escola depois de quase dois anos, após uma festa de fim de ano. “Durante uma apresentação, cada criança estava com um adulto por trás, até mesmo pra levantar o próprio braço. Pensei: como estão ensinando essas crianças a evoluir, se estão fazendo tudo por elas?”, diz.
No ano seguinte, Camilla buscou uma vaga para o garoto na mesma escola em que a filha dela, dois anos mais velha que o irmão, estudava. “É uma escola regular. Decidi colocá-lo nela porque percebi que seria muito melhor para o meu filho”, diz a advogada.
Logo que chegou na escola nova, Luiz Antônio teve dificuldades para se integrar. Alguns alunos tiveram medo do garoto, principalmente quando ele demonstrava estresse. “Não foi um processo fácil. Foi muito doloroso. Mas deu certo. Todo mundo acaba crescendo com isso, o meu filho e as outras crianças”, diz a advogada.
Ela comenta que após as dificuldades iniciais, o garoto ficou completamente integrado à turma. “Essa inclusão não é apenas jogar o aluno na escola. É todo um processo. O professor também precisa entender o potencial do estudante para poder ajudá-lo. Isso leva tempo”, comenta.
“Hoje, quando ele está nervoso, os colegas entendem. Isso faz com que esses outros alunos tenham mais empatia”, relata a advogada.
Na sala de aula, uma professora passa atividades adaptadas a Luiz Antônio. “Enquanto os amigos estão no quinto ano, ele, que é alfabetizado, está aprendendo a contar. Mas ele fica na mesma classe. Os colegas até o parabenizam quando ele progride e sempre torcem por ele”, diz a mãe.
“O meu filho evoluiu muito na escola. Mas também tivemos de contratar um psicopedagogo para dar reforço a ele. Uma das coisas mais importantes, na escola, é saber que ele está convivendo com outras crianças e fazendo amigos”, diz a mãe.
O garoto, que tem dificuldades para falar, costuma expressar felicidade quando está perto dos colegas de classe.
A advogada comemora o fato de o garoto já ter feito, nos últimos anos, quatro viagens junto com a escola, sem a presença da mãe. “No futuro, o meu filho vai ter que se virar e tentar ser independente, porque eu não sou eterna”, diz.
Para Camilla, o caso do filho comprova a importância do ensino inclusivo. Ele sempre estudou em escolas particulares. A mãe, que atua na área da defesa de pessoas com deficiência, afirma que a inclusão é fundamental no ensino público ou privado.
“O que percebo é que se em escolas especiais, no ensino público ou privado, o aluno vai conviver com crianças com algum tipo de deficiência. Isso pode fazer com que ela recrie os comportamentos delas e tenha dificuldades para evoluir. Já nas escolas regulares, ela vai conviver com diversas crianças e vai ter uma capacidade maior de sociabilizar e terá mais independência”, diz.
“Nas escolas públicas, não é possível, ao menos até então, recusar matrículas de alunos com alguma deficiência. Por isso, os professores são obrigados, de alguma forma, a fazer a inclusão. Não é uma inclusão perfeita, mas é possível que com o tempo haja melhorias nessa área”, acrescenta a advogada.
Segundo Camilla, uma medida como o decreto de Bolsonaro pode desestimular os avanços no ensino regular para acolher as crianças com deficiência.
Repúdio à medida
Para diversas entidades, a PNEE de Bolsonaro representa um grave ataque ao ensino inclusivo no Brasil. Um dos temores, apontam especialistas, é que muitas escolas deixem de aceitar crianças com deficiência sob o argumento de que as unidades especiais podem dar um melhor apoio.
Luiza Correa classifica a política do presidente como um retrocesso em avanços conquistados por meio da Constituição Federal e da Lei Brasileira de inclusão da pessoa com deficiência, de julho de 2015. “A política anterior (de 2008) não eliminou as escolas especiais existentes, mas cada vez mais os pais buscam matrículas nas escolas regulares. Várias pesquisas demonstram que a inclusão é muito melhor pedagogicamente”, declara.
Nova política nacional para alunos com deficiência é lançada com ressalvas de especialistas sobre abordagem para inclusão
“Na educação inclusiva, o estudante consegue evoluir bastante. Esse tipo de educação foca na competência e capacidade dos estudantes e acredita que todos os alunos aprendem”, acrescenta.
A PNEE de Bolsonaro foi repudiada pela comunidade científica vinculada aos grupos de inclusão de pessoas com deficiência da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Observatório de Educação Especial e Inclusão Educacional (ObEE) e da AcolheDown.
“Em muitas oportunidades, governos deixam de implementar políticas de Estado que se fazem sentir na vida das pessoas. Mas o presente decreto ao invés de contribuir no aperfeiçoamento de um marco legal, por um lado desconstrói os avanços obtidos, e, por outro, induz a sociedade a caminhar em direção à negação dos direitos, postulando o segregacionismo”, diz trecho da nota de repúdio da comunidade científica que atua com os grupos de inclusão.
“O referido decreto compõe o cenário de esfacelamento do legado dos direitos atualmente vivenciado no Brasil que se expressa no franco desmonte das políticas sociais mediante negação dos investimentos necessários à sua implementação, estabelecendo cisões profundas com as conquistas democráticas da população brasileira”, acrescenta a nota.
Também em nota, a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) criticou a PNEE de Bolsonaro. “Não se trata de uma nova política, pois voltamos ao passado. A escolarização de pessoas com deficiência volta a ter como foco o trabalho especializado. Trata-se da descaraterização de uma política nacional que garante direitos. São direitos que têm como ponto de partida a Constituição Federal de 1988, ainda em vigor e são assegurados e promovidos pela Lei Brasileira de Inclusão”, diz trecho do comunicado da instituição de ensino.
Outras diversas entidades ligadas a pessoas com deficiência também repudiaram a PNEE de Bolsonaro.
Para especialistas, um dos riscos é que o governo federal utilize recursos na educação especial em detrimento do ensino inclusivo, que, segundo estudiosos, precisa de mais investimentos para acolher os alunos e para aperfeiçoar o modo de inclusão.
“Os recursos brasileiros destinados à Educação precisam ser encaminhados para a escola regular para a inclusão. Qualquer recurso dividido entre escola especial e regular não consegue melhorar a inclusão”, diz Luiza Correa.
Segundo o Ministério da Educação, a decisão sobre aderir à PNEE cabe a cada Estado e município. Para aqueles que adotarem a iniciativa, deverão ser oferecidos diferentes tipos de apoio, como a instalação de salas de recursos multifuncionais ou específicas, cursos de formação inicial ou continuada a professores e aprimoramento de Centros de Serviço de Atendimento Educacional Especializado.
De acordo com a pasta, as escolas e salas especiais pelo Brasil devem aumentar os números de alunos com deficiência ou transtornos globais do desenvolvimento que não se beneficiaram das escolas comuns e evadiram em anos anteriores.
Um dos pontos da PNEE de Bolsonaro diz que as famílias devem participar do processo para definir se o estudante será levado para uma unidade de educação especial. Conforme a medida assinada pelo presidente, os parentes devem considerar “o impedimento de longo prazo e as barreiras a serem eliminadas ou minimizadas para que ele (o estudante) tenha as melhores condições de participação na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas”.
Um dos temores, segundo especialistas, é que familiares acreditem que haverá maiores investimentos no ensino especial e decidam retirar os estudantes com deficiência de salas regulares.
Deputados federais da oposição protocolaram projetos para sustar a política, sob o argumento de que se trata de uma medida que promove a exclusão no ambiente escolar.
O senador Fabiano Contarato (Rede-ES) apresentou um projeto de decreto legislativo no Senado, também para sustar os efeitos do decreto de Bolsonaro. O parlamentar, que teve o apoio da senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), classificou a PNEE de Bolsonaro como uma medida que fere a Constituição e outras leis de educação inclusiva.
Apesar dos diversos posicionamentos contrários à medida, o Ministério da Educação considera a PNEE um importante avanço para o ensino inclusivo no país.
“Um dos princípios fundamentais é o direito do estudante e da família na escolha da alternativa mais adequada para a educação do público-alvo desta Política”, diz nota da pasta. Segundo o ministério, o principal objetivo do decreto é garantir a esses alunos “uma formação integral”.
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