Barraca de praia em Ipitanga era ponto de aliciamento para tráfico internacional de drogas
No terraço ou nas espreguiçadeiras perto do mar, o público jovem se reunia para ouvir os DJs. Muitos curtiam o som empunhando bebidas vendidas na badalada barraca de praia Paradise Villas, em Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador (RMS). No entanto, a diversão era só fachada. O local era um ponto de aliciamento de clientes para transportar drogas ao exterior.
Segundo a Polícia Federal (PF), era na barraca Paradise Villas, no limite das praias de Vilas do Atlântico e Ipitanga, que uma organização criminosa, especializada no tráfico internacional de entorpecentes pelo modal aéreo – na maioria das vezes para Europa e Ásia – aliciava na Bahia “mulas” para levar drogas escondidas nas bagagens.
“Isso acontecia em festas na barraca, algumas delas eletrônicas. Durante as conversas, percebiam se os clientes demonstravam algum interesse e aí faziam a proposta, dizendo que poderiam ganhar R$ 20 mil com o êxito no transporte da droga e ainda conhecer vários países com tudo pago pela quadrilha”, declarou o delegado Fábio Araújo Marques, da PF.
No dia 12 deste mês, a PF cumpriu mandados de prisão e de busca e apreensão na Bahia – Salvador, Lauro de Freitas e Conceição do Coité – e nos estados de Sergipe, Maranhão, Pará, São Paulo e Santa Catarina. A ação fez parte da segunda fase da Operação Olossá, que teve como alvo a organização criminosa que atuava na barraca.
O dono
De acordo com as investigações da PF, a barraca é uma concessão da Prefeitura de Lauro de Freitas e está em nome de um funcionário do dono da Paradise Villas. Apesar de a PF não divulgar os nomes dos investigados, o CORREIO apurou que o dono é conhecido como André Gaúcho, preso na 1ª fase da Operação Olossá, em 14 de março.
Segundo a PF, ele tinha a função de chefe do núcleo de aliciamento na Bahia, providenciava os passaportes e fornecia euros para custear as despesas da viagem.
André Gaúcho era visto poucas vezes na barraca. No local, pouca gente disse conhecê-lo.
“Nunca o vi, mas o comentário é que o dono dessa barraca tem um restaurante na Lagoa do Abaeté e produzia shows num terreno do pai, em Vilas do Atlântico. Ele sempre esteve envolvido com e eventos. Mas ninguém aqui vai falar mais do que isso, se falar. Ninguém quer se envolver”, disse um senhor, que mora no local há mais de 30 anos.
Promessas
A quadrilha começou a ser investigada pela PF em maio de 2019, após denúncias. Desde então, os federais identificaram aproximadamente 40 pessoas que foram aliciadas e conseguiram fazer o transporte da droga. Algumas delas eram garotas de programa, que frequentavam a barraca como clientes.
Clientes eram sondados para verificar interesse durante festas na barraca de praia, segundo a Polícia Federal (Foto: Bruno Wendel/CORREIO) |
Como André Gaúcho frequentava uma casa de prostituição em Itapuã, as garotas passaram também a ir à Paradise Villas.
“Lá, o dono da barraca dizia que, além dos R$ 20 mil, elas poderiam continuar no exterior fazendo programa e fazendo parte da organização recebendo outras mulas”, disse o delegado.
Uma garota de programa paraense, com passagem pela Bahia, foi uma das pessoas presas no dia 12. Ela estava no Pará, onde recrutava outras garotas de programas para serem “mulas” da quadrilha. “Ela passou um período aqui em Salvador, logo depois fez duas ou três viagens levando droga e conquistou prestígio da quadrilha e atualmente aliciava outras mulheres”, relatou o delegado.
Fachada
Apesar de levar “Villas” no nome, a entrada da Paradise Villas está na Rua Paulo dos Santos Ferreira, em Ipitanga. Ela foi construída num trecho que faz divisa entre as duas praias, a cerca de 100 metros da última barraca de Vilas Atlântico, a Buraco da Velha. Por causa da pandemia, todas as barracas de praia de Lauro seguem fechadas há cinco meses devido à decreto municipal.
A Paradise Villas tem o tamanho equivalente a duas barracas da praia de Vilas do Atlântico – todas seguem padrão de tamanho e de estrutura, com cobertura de telhas, uma varanda, um salão onde funcionam um bar, cozinha e banheiros.
“Enquanto as outras barracas funcionavam de domingo a domingo, ela só abria de fato nos finais de semanas, e à noite, para as festas. Às vezes rolavam umas raves de dois dias seguidos. Já durante semana, as janelas estavam sempre fechadas e a gente via uns gatos pingados sentados, mas eram sempre as mesmas pessoas, algumas sentadas nos mesmo lugares: em mesas encostadas às paredes com a vista para o mar. Era como se a conversa fosse sigilosa. Se alguém sentasse perto, era orientado ir para o outro lado da barraca”, contou uma moradora.
O CORREIO procurou a associação que representa os donos de barracas de Ipitanga, para saber como foi a repercussão da notícia do funcionamento da Paradise como ponto de aliciamento de clientes para o transporte de droga para o exterior, e se isso prejudica a imagem dos demais estabelecimentos. A entidade está desativada, segundo a proprietária da Barraca Ipitanga, que se identificou apenas pelo nome de Guiomar, ex-integrante da associação.
No primeiro momento, Guiomar, que trabalha na praia de Ipitanga há 25 anos, disse que sabia da existência da barraca, mas que “ninguém quer falar nada”. Logo em seguida, quando questionada sobre detalhes da Paradise, ela mudou o discurso: “Eu estou aqui há muito tempo e não conheço essa barraca. Eu respondo pela minha”.
Apesar de a Paradise Villas está em Ipitanga, o CORREIO também procurou a Associação dos Empresários da Orla de Vilas do Atlântico para saber se os empresários temem que seus estabelecimentos sejam comparados à barraca alvo de investigação da PF. O presidente da entidade, Vítor Ramos, dono da Barraca Aruama, disse que não tem nada o que comentar.
Barraca está fechada desde a prisão de André Gaúcho; segundo moradores, ela só funcionava nos finais de semana à noite (Foto: Bruno Wendel/CORREIO) |
Como a Paradise Villas é uma concessão – quando o governo transfere a um terceiro o direito de explorar algo que normalmente seria de sua responsabilidade -, o CORREIO procurou a Prefeitura de Lauro de Freitas pedindo um posicionamento quanto às denúncias da PF, se a prefeitura tinha conhecimento das irregularidades, se daqui para frente pretende fiscalizar as atividades realizadas nas barracas e qual o nome da última pessoa que ganhou o direito de explorar a concessão no local. A prefeitura não respondeu até o fechamento desta reportagem.
Ex-PM preso
Um vendedor ambulante que vende água de coco próximo ao local contou ao CORREIO que, durante o funcionamento da barraca, viaturas da Polícia Militar paravam em frente à Paradaise Villas pelos menos três vezes na semana.
“O estranho é que só iam nela. Muitas vezes, a barraca estava vazia e os policiais estavam lá e passavam horas”, disse ele.
A PM foi procurada, mas não se manifestou em relação à observação do vendedor. Na operação da Polícia Federal do dia 12 de agosto, um ex-policial militar baiano, integrante da quadrilha, foi preso em um condomínio de luxo em Itajaí (SC). Com ele, foi encontrado uma Land Rover avaliada em mais de R$ 300 mil e drogas sintéticas.
O ex-PM é apontado como o chefe financeiro da organização. A PF chegou até ele através de um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). As investigações e o levantamento do Coaf apontaram que o ex-PM tinha um patamar de vida muito superior ao que seria sustentado pelo salário de um policial. Ele foi expulso da PM na Bahia por diversos crimes.
Outro baiano foi preso na operação, no mesmo dia: um homem conhecido pelos apelidos de Tripa ou Donatello. Ele estava em São José de Ribamar (MA) e fazia parte da liderança ao lado de André Gaúcho. Pouco antes de ser pego, Tripa quebrou o celular com as mãos na tentativa de dificultar a investigação. Por conta disso, ele sofreu um corte na palma da mão direita. Um taxista baiano, uma pessoa de confiança de Tripa, foi preso também mesmo dia na Avenida Paralela.
Líder
No mesmo dia em que policiais federais encontraram o ex-PM, foi preso também o líder da organização, um paulistano. Ele morava numa casa com a família no Robalo, bairro em expansão da região da capital. Ele estava lá para dificultar a ação da Polícia Federal. Não há registro de nenhuma saída de droga da quadrilha por Sergipe. Ele não matinha contado com as mulas, não aparece nas conversas, não tem rede social, não tem vínculo nenhum com as mulas. A PF chegou até ele após a prisão de um comparsa aqui na Bahia.
Nessa fase da operação, a PF visa fazer um levantamento financeiro da organização. “Agora vamos apurar a lavagem de dinheiro. Os líderes não tinham nada em seus nomes. Os bens são ocultados em nomes de laranjas, como é o caso da barraca de praia”, explicou no dia, o delegado Fábio Araújo Marques, da PF. A droga que a organização transportava vinha da Bolívia, Colômbia e Peru. O delegado disse ainda que outras pessoas da quadrilha estão sendo procuradas.