Bahia é porta de entrada para contrabando de cigarros no Norte e Nordeste
Sede do maior entroncamento rodoviário do Norte e Nordeste, localizado em Feira de Santana, a Bahia é a ‘menina dos olhos’ do crime organizado na hora de transportar cigarros contrabandeados. Feira, Barreiras e Vitória da Conquista são, segundo a Polícia Rodoviária Federal (PRF), os principais pontos de atenção, mas isso não tem a ver com a taxa de consumo nesses locais. O que os faz com que essas trê cidades sejam pontos certos de passagem para os contrabandistas são as rodovias que as rodeiam, estratégicas para a logística de transporte: BR-110, BR-116 e BR-135.
Vendidos em bares e pontos comerciais de pequeno porte e, muitas vezes, informais, os cigarros contrabandeados são absorvidos pelo mercado em grande escala no território brasileiro e baiano. Isso porque os clandestinos custam, em média, a metade do preço dos originais.
A diferença considerável de valores se deve, pricipalmente, à alta taxa de tributação da produção nacional, uma tentativa de inimbir o consumo. Mas, ao invés disso, o que resultado da política é o avanço e o domínio dos contrabandistas no mercado.
Atualmente, 57% dos cigarros consumidos no Brasil são ilegais. Na Bahia, os contrabandeados são 40% de todos os cigarros que circulam no estado, de acordo com estimativas da indústria. Em 2015, respondiam por 37%. A alta taxa de circulação desses produtos faz com os cofres públicos baianos deixem de faturar, anualmente, cerca de R$ 196 milhões.
Associado a diversos delitos e financiador das organizações criminosas, o contrabando de cigarros representa, segundo os órgãos oficiais, um risco real para segurança pública da Bahia. A atividade, além de ser peça fundamental para bandidos e estar relacionada a crimes como tráfico de drogas e armas, roubos a mão armada e assassinatos, é um fator sólido para o aumento da violência por onde passa – inclusive o território baiano, uma rota fixa.
A cada dez cigarros comercializados na Bahia, quatro são ilegais (Foto: Divulgação/PRF) |
Financiador do crime
De acordo com Jader Ribeiro, chefe da seção de Operações Especializadas da PRF, o contrabando é uma das atividades cruciais para criminosos baianos que tentam diversificar as ações. Assim, conseguem obter mais rendimentos e financiar outras ações.
“Existe uma tendência do aumento do contrabando na Bahia por conta da diversificação das atividades do crime organizado, que é notada pela polícia há alguns anos. Os criminosos estão investindo em outros ilícitos para obter mais lucro. E o contrabando de cigarros é um dos focos das organizações criminosas. É uma atividade que serve de financiamento para eles e que ajuda a promover outros crimes como tráfico de armas, tráfico de drogas, roubos e outros delitos”, afirma.
Segundo a PRF, na Bahia, até 15 de outubro, os agentes apreenderam 2,57 milhões de maços de cigarros – um impacto financeiro de quase R$ 13 milhões no crime organizado. Os transportadores foram inteceptados em Vitória da Conquista, na BR-116 (1,05 milhão de maços), Feira de Santana, também na BR-116 (882 mil), Ribeira do Pombal, na BR-110 (300 mil), Guanambi, na BR-030 (325 mil) e Jequié, na BR-116 (5 mil).
Apesar de o número de apreensões ter caído em comparação com 2019, quando 4,046 milhõs de maços foram apreendidos no mesmo período, a sensação de que há uma tendência de aumento da atividade em território baiano ainda existe, avalia Jader.
O porquê da intensificação do contrabando na Bahia está na localização geográfica e na malha viária, caminho lógico para os contrabandistas na hora de levar as cargas para o Norte e outros estados do Nordeste.
“O contrabando de cigarros acontece muito na Bahia por conta da demanda interna e também pelo fato de a Bahia ser a porta de entrada para o Norte e o Nordeste. A localização geográfica e as rodovias são importantes para entender o que motiva o aumento da atividade. O estado tem malhas rodoviárias cruciais na logística de escoamento do negócio”, explica Jader.
Feira de Santana é, para a PRF, é a cidade mais crucial para o avanço da atividade. “É um entroncamento rodoviário que facilita a chegada em outros estados com a BR-116, BR-101, BR-124. Facilita demais a vida deles”, diz o chefe da seção de Operações Especializadas.
Feira de Santana é foco da PRF no combate ao contrabando de cigarros (Foto: Divulgação/PRF) |
Fator tributário
Campeão mundial na distribuição e consumo de cigarros ilícitos, o mercado brasileiro vê o contrabando ganhar ainda mais corpo diante da carga tributária aplicada no produto, entre 71% e 90%. Presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade (FNCP), Edson Vismona a vê como um trunfo para o contrabando.
“O Brasil, respeitando as determinações da OMS, tem um dos maiores impostos para cigarro do mundo. O problema é que a produção de cigarro do Paraguai, que tem uma das menores tributações, se aproveita disso. Com a tributação baixa, o produto que chega aqui é muito mais barato que os legalmente comercializados e o consumidor não titubeia: vai no que dói menos no bolso”, afirma.
Para Vismona, tributação alta tem grande impacto no contrabando de cigarros no Brasil (Foto: Tâmma Waqqued/Fiesp) |
Segundo o Ibope, o preço médio do contrabandeado no Nordeste em 2019 era de R$ 3,49; já o do produto legal era de R$ 7,51. Ou seja, o produto nacional é mais do que duas vezes mais caro em território nordestino. Pela lei brasileira, o preço mínimo de venda de um cigarro legal, nos critérios da Anvisa, é R$ 5.
Para o economista Pery Shikida, especialista da chamada “economia do crime”, a decisão estratégica de taxar os cigarros de forma ostensiva é válida, mas facilita a absorção da mercadoria ilegal.
“Uma pessoa não vai priorizar o produto nacional mesmo que ele seja de melhor qualidade e tenha em si menos problemas para o organismo. Quem tem menos dinheiro, que é maioria, vai comprar o contrabando, não tem jeito”, opina.
Prejuízo financeiro
O crescimento do contrabando representa uma derrota gigantesca para a arrecadação do Brasil sobre o produto. Edson Vismona, presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade (FNCP), afirma que as perdas chegam a bilhões e, no ano passado, superaram pela primeira vez a arrecadação com a taxação do produto.
“No ano passado, houve mais evasão fiscal do que pagamento de impostos. Uma diferença de R$ 400 milhões. Ou seja, foram pagos R$ 12,8 bilhões em impostos e detectamos uma evasão de R$ 13,2 bilhões em cigarros contrabandeados. Pela primeira vez, a evasão fiscal foi maior do que a arrecadação”, diz.
O Ministério de Economia e a Secretaria da Fazenda foram procurados para falar sobre o impacto nos cofres públicos, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.
Evasão fiscal por cigarros é maior do que arrecadação no Brasil (Foto: Divulgação/PRF) |
O economista Perry Shikida acredita que a alta tributação é ineficaz em reduzir o consumo e perigosa ao possibilitar o lucro de organizações criminosas. “O governo está fazendo uma política de erradicação do cigarro. A carga tributária é estrategicamente pensada para que se aumente o preço e diminua o consumo. Só que esse produto contrabandeado tem uma circulação em um valor muito menor que acontece em larga escala. Não adianta querer desestimular o uso com preços altos e não conter o avanço dessa atividade criminosa que domina mais da metade do mercado inteiro em território nacional. É facilitar a vida do crime”, avalia.
Interesse mundial
Além disso, não é só de cigarro paraguaio que vive o contrabando no Brasil. O mercado já desperta a atenção de novos contrabandistas de diversos países. Um levantamento do Ibope Inteligência aponta um aumento exponencial da presença de cigarros contrabandeados da Coreia do Sul, Reino Unido e Estados Unidos, especialmente no Norte e no Nordeste.
A marca sul-coreana Pine, por exemplo, viu sua fatia no mercado ilegal no Nordeste saltar de 7% em janeiro de 2019, para 14% em julho de 2020. A Pine já ultrapassou marcas ilegais paraguaias, tradicionalmente líderes de mercado, como a Gift, produzida pela Urion, e a Eight, da Tabesa. A marca norte-americana Bellois já é a terceira ilegal mais consumida no Nordeste – 8% em 2019. Ao todo, 12% dos cigarros ilegais consumidos no Nordeste são dos EUA. No Norte, 11% são do Reino Unido.
Risco à saúde
A produção legal de cigarro nacional precisa obedecer regras rígidas, o que não acontece com produtos ilegais que circulam por aqui. O cigarro não é nada saudável e, mesmo os que respondem aos critérios de produção causam danos consideráveis ao organismo como bronquite, úlceras gástricas, infarto, AVC e outros problemas. No caso dos contrabandeados que vêm de mercados com menor taxação e menor controle de qualidade, os riscos podem ser iguais ou ainda maiores para o ser humano – não se sabe o que vem dentro.
Isso é o que explica Maristela Sestelo, médica pneumologista e coordenadora do programa de apoio ao fumante da Escola Bahiana e da Universidade do Estado da Bahia (Uneb): “Como não há o controle da Anvisa, a determinação legal da quantidade de nicotina e outros produtos que estão presentes nos cigarros ficam indeterminadas. Possivelmente, teremos uma quantidade variável de nicotina, a substância que causa a dependência química, podendo deixar indivíduos com dependência mais elevada”.
Segundo Maristela, é plausível considerar a possibilidade de estes cigarros causarem doenças que os de produção regulamentada não provocam.
“Acredita-se que, diante da falta de regulamentação, a exposição a substâncias desconhecidas, que podem ser acrescentadas aos cigarros possa trazer malefícios à saúde, além dos já conhecidos como câncer de pulmão, bexiga, boca, esôfago e outra centena de doenças”, informa.
A Anvisa fez um alerta: “Os cigarros irregulares representam um grave problema para a sociedade, já que têm preço mais baixo dos que os regularizados e, consequentemente, são mais acessíveis para crianças e adolescentes, altamente vulneráveis à iniciação no consumo precoce de tabaco. Não há níveis seguros para o consumo de qualquer produto derivado do tabaco. A única forma de estar livre dos riscos relacionados a esses produtos é não consumi-los e não respirar a fumaça”, aponta.
*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro.