Proporção de candidatos negros cai em Salvador na comparação com eleição de 2016
Na contramão do que aconteceu no Brasil como um todo, a participação de candidatos que se autodeclaram negros (pretos ou pardos) caiu em Salvador entre 2016 e 2020. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nas eleições deste ano – dados atualizados às 16h40 de ontem – 1.605 negros pediram registro de candidatura à Justiça Eleitoral, juntos, eles representam 79,5% de todos os pedidos de inscrição no pleito. Em 2016, os 1.071 candidatos negros representavam 83,47% dos pedidos de registro. A redução é de 3,97 pontos percentuais.
Nacionalmente, os pretos e pardos somados são 49,92% dos 549.235 inscritos, um aumento de 2,16 pontos percentuais entre as eleições de 2020 e há de 4 anos atrás. Na Bahia há uma estabilidade. Entre os dois pleitos, foram inscritas 3.211 candidaturas negras a mais neste ano (32.198, 78,59%), uma redução de 0,15 pontos percentuais – em 2016 os negros eram 78,74% dos 36.806 candidatos que solicitaram inscrição da candidatura.
A queda na proporção de candidatos inscritos que se declararam negros, em Salvador, não é alarmante e não indica uma tendência de redução na representação de pretos e pardos dentre os postulantes, aponta o professor do Departamento de Ciência Política da Ufba, Cloves Oliveira.
“Não considero isso significativo. Continuamos com uma participação muito significativa de negros nas eleições. Temos quase 80% de candidatos negros e isso é muito relevante. A oscilação está dentro da possível indicação de que as pessoas podem variar a forma como se autodeclaram”, afirma o professor.
Os candidatos negros são maioria no estado e na capital, onde as pessoas negras também correspondem a maior parte da população. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Anual de 2019 (1ª visita), do IBGE, 79,2% dos soteropolitanos se identificam negros. Dentre os baianos, se autodeclaram negros 80,1% do povo da Bahia.
Vagas
O crescimento no total de candidatos negros – assim como da quantidade de candidatos como um todo – e a redução de 94 vagas para as câmaras de vereadores baianas elevou a concorrência por uma vaga dentre os candidatos pretos ou pardos. Atualmente, pouco mais de 6 postulantes negros buscam fazer parte da próxima gestão, que oferece 5.234 vagas dentre prefeitos, vereadores e vices. Em 2016, eram cerca de 5,4 negros para cada uma das 5.328 vacâncias.
Em Salvador, cerca de 28 candidatos negros buscam uma vaga na gestão municipal. A concorrência era de quase 20 postulantes pretos ou pardos para a mesma quantidade de vacâncias em 2016.
Para o cargo de prefeito de Salvador, se declararam negros 6 dos 9 candidatos, ou cerca de 66,6% dos concorrentes. Em 2016, eram 5 pretos ou pardos buscando trabalhar no Palácio Thomé de Souza. Em 2020, a quantidade absoluta e porcentagem de vices negros é a mesma que a dos prefeitos. Na última eleição, apenas um candidato a vice declarou ser não-negro, o que faz com que a proporção de negros entre os postulantes ao cargo caia cerca de 20 pontos percentuais.
Dentre os vereadores, são 1.264 negros buscando integrar o poder Legislativo da capital, o que corresponde a 79.6% dos 1.587 concorrentes. Em 2016, os pretos ou pardos somavam 883 postulantes, o que correspondia a 83.6% de todas as 1.056 candidaturas para a Câmara Municipal de Salvador.
Um acréscimo de 3.054 candidaturas negras para as câmaras de vereadores da Bahia foi registrado neste ano na comparação com o pleito de 2016. A proporção de candidatos pretos ou pardos ao legislativo permaneceu na casa dos 79%, com uma baixa de 0,32 pontos percentuais na representação dos negros entre os inscritos para concorrer a vagas ao parlamento municipal em 2020.
Recorte
De uma eleição municipal para a outra, a porcentagem de candidatos pardos em Salvador caiu em 7,74 pontos percentuais, representando 40,81% dos inscritos nas eleições 2020. Se identificaram como pardos 655 postulantes, 135 a mais que em 2016.
Por outro lado, mais postulantes da capital se declararam pretos, o que elevou o recorte em 3,77 pontos percentuais. Em 2020, os pretos são 38,69% dos candidatos, o que corresponde a 621 pessoas. Há quatro anos, apenas 374 dos que solicitaram candidatura se identificaram como tal.
A proporção de candidatos pretos que solicitaram a inscrição da candidatura também cresceu em 4,3 pontos percentuais na Bahia. São 8.171 candidatos com esta identificação contra 5.756, em 2016. Proporcionalmente, os pretos representam 19,94% dos postulantes baianos em 2020.
O crescimento na proporção de pessoas pretas dentre os candidatos chama atenção do professor Cloves Oliveira. “É muita gente preta simbolicamente marcando presença e aparecendo na propaganda, se colocando como candidato diante das comunidades que procura representar e sendo porta-voz de discursos de afirmação de interesse dos grupos de pertencimento”, comemora.
Para ele, a migração de pardos para pretos que foi observada em Salvador é um processo de aproximação da raça negra, como ela é vista socialmente: “Quando o pardo migra para o preto, é um processo de afirmação da identidade, uma declaração política com a identidade de negro”.
Os registros de candidatura ainda serão analisados pelos juízes eleitorais, que pode aprovar o registro ou tornar os postulantes inaptos. O prazo para concluir o julgamento é 20 dias antes do pleito, que acontece em 15 de novembro.
Causas
O professor ressalta que a declaração de grande parte dos candidatos é preenchida por secretários do partido, o que implica em uma heteroclassificação – o postulante passa a ser identificado como ele é visto, não, necessariamente, como ele se identifica. Oliveira ainda indica que existe um processo de “ajuste de conduta” com a mudança da declaração dos candidatos passando de pardo para branco ou para preto.
“Essa mudança ocorre dentro de uma margem de coerência que tem a ver com uma ambiguidade da classificação das pessoa e a pressão do contexto de maior debate sobre as questões de reconhecimento”, diz Oliveira.
A pandemia é apontada como um dos fatores que pode ter reduzido a representatividade dos negros dentre os candidatos. A antropóloga e coordenadora da Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro) da Ufba, Jamile Borges, acredita que o coronavírus fez com que as pessoas ficassem menos expostas a situações de embate eleitoral e ainda reduziu as possibilidades do movimentos sociais de apresentar mais candidaturas viáveis.
“Em geral, os candidatos que se autodeclaram negros são oriundos de movimentos sociais. A pandemia trouxe uma precarização das relações e o empobrecimento. Os partidos passaram, especialmente os menores, a ter menos tempo de contato e verba, o que dificultou a emergência de novos nomes”, afirma.
Coordenadora do Pós-Afro aponta que pandemia dificultou a viabilização de novas candidaturas negras (Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal) |
O fim das coligações para o cargo de vereador é causa da redução da representação dos negros dentre os candidatos, afirma o coordenador do Coletivo de Entidades Negras, Marcos Rezende, que é historiador e mestre em desenvolvimento e gestão social.
“Com o fim das coligações partidárias, as siglas devem lançar seu próprios nomes possíveis, buscar mais candidatos, o que, em números absolutos, pode aumentar a quantidade de candidatos negros. Entretanto, cada partido terá mais candidatos brancos que, tradicionalmente, recebem mais recurso e acabam sendo eleitos”, argumenta.
Com o fim do prazo para a inscrição das candidaturas, agora, é hora de ver como o cenário montado em Salvador irá ressoar na composição da próxima gestão. A Cientista Política e professora do Ifba campus Feira de Santana, Waneska Cunha, aponta que os brancos são os mais votados, mesmo quando estão em menor número entre os candidatos.
“O fato de Salvador ter uma maioria de candidatos negros não implica que haja uma representação política de negros. Há uma disparidade entre as candidaturas e os eleitos. Durante o processo de recrutamento e seleção entre os candidatos e eleitos, existem outros fatores, como o racismo estrutural, que são uma barreira para que os candidatos negros ocupem esses cargos de poder”, afirma a cientista política.
A redução da porcentagem de candidatos negros na eleição pode aprofundar a sub-representação da população negra na classe política do município, alerta a fundadora da Marcha do Empoderamento Crespo, Naira Gomes. Para ela, essa falta de representação restringe as pautas prioritárias da cidade.
“O ingresso de populações marginalizadas em locais de poder e decisão faz com que sejam pautas outras prioridades, isso leva a política para os becos, as escadarias, as vielas. A representação é um recorte fundamental para a construção de políticas públicas de qualidade”, afirma Gomes.
O ideal seria que a classe política da capital representasse a demografia da sociedade, diz Cunha. “Precisamos que a câmara tenha a cara da cidade, é importante que as pessoas sejam representadas no espaço político. Por isso, é importante estar atento ao voto e levar os recortes de raça e gênero em conta para fazer essa decisão”, afirma a cientista política, que conclui: “uma câmara desigual é reflexo da desigualdade social da sociedade brasileira estruturada pelo racismo”.
Cota
Mesmo com a redução da proporção de candidatos negros, suspeitas de declaração falsa como preto ou pardo já foram apontadas na Bahia e em outros estados. A mudança na autodelcaração é ligada à decisão liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, que adianta a obrigatoriedade da divisão proporcional de recursos do fundo eleitoral e o tempo de propaganda no rádio e TV entre candidatos negros e brancos nas eleições.
A decisão será submetida à análise do plenário da Corte. Em agosto, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) havia decidido que as regras entrariam em vigor apenas nas eleições de 2022.
A declaração racial de um candidato é fruto de uma autodeclaração, ou seja, não existe uma verificação da veracidade de cada alegação. O processo é o mesmo no IBGE.
Na revista retratos, do IBGE, de maio de 2018, o pesquisador da Coordenação de População e Indicadores Sociais do instituto, Leonardo Athias, explica que a autodeclaração é um preceito de direitos humanos. “A identificação é da pessoa, é ela que sabe como se entende, porque é uma interação social, uma percepção de si mesma e do outro. Eu não vou classificar o outro, até porque muitas vezes isso foi feito para segregar, para perseguir”, aponta.
A fundadora da marcha do empoderamento negro aponta que os casos de suspeitas de declarações falsas podem ser tanto fruto de uma confusão sobre as a própria identidade, mas também uma fraude para conseguir mais votos ou recursos.
“É possível que pessoas estejam confusas porque o Brasil conseguiu diluir e confundir a identidade racial. Entretanto, existem casos de pessoas brancas que se autodeclaram negras para utilizar uma vaga com cota ou o fundo eleitoral. Isso é um atentado contra as políticas afirmativas”, aponta.
*Com orientação da subeditora Fernanda Varela