Mesmo ilegais, apostas movimentam campanhas políticas e redes sociais
Você tem coragem de arriscar perder, de uma só vez, até R$ 165 mil? Na campanha eleitoral de 2020, vídeos circulam nas redes sociais com pessoas exibindo bastante dinheiro e convidando adversários políticos a apostarem. Outras imagens mostram pessoas que firmam uma aposta e fazem o registro para ficar comprovado. Todas as cenas se tornaram ‘virais’ e algumas já são do conhecimento da Policia Federal, que investiga a prática.
Em Riachão do Jacuípe, no nordeste da Bahia, cidade de 33 mil habitantes, um homem que não se identificou, falando para alguém chamado de Raimundo, exibe R$ 165 mil em espécie que estão reservados para serem apostados. “Isso é para agora. Se quiser mais tarde, terá mais. É só dizer onde é que vai levar para a gente ‘casar’”, disse o rapaz. ‘Casar’ é o verbo utilizado para designar a realização de uma aposta.
“Aqui não é história, não. Nós abrimos a comporta e estamos de carro blindado. Graças a Deus, não estou de castigo de Deus e não temos medo de nada. Estamos fazendo travesseiro, o dinheiro está tão pouco”, debochou o homem após deitar com a cabeça em cima das milhares de notas de R$ 100 e R$ 50, sem divulgar qual candidato ele apoiava
Na mesma cidade, em outro vídeo, um homem conhecido como Marinho do Barreiros aparece com R$ 100 mil em espécie e diz que está disposto a apostar de R$ 10 mil a R$ 500 mil. “Zé Filho em 2021 será prefeito de Riachão de Jacuípe. Quem quiser tem 100 mil em dinheiro vivo aqui. Amanhã tiro mais 100, quarta mais 100, quinta mais 100 e o dinheiro tá guardado. E muito bem guardado, com pessoas de confiança”, afirmou.
Pessoas da cidade, que não quiseram se identificar, disseram que os apostadores são empresários da cidade e que a prática é um costume que ficou mais explícita por causa das redes sociais. “Sempre ouvi falar que isso acontecia, mas não tinha presenciado”, disse um morador.
Em nota, o Ministério Público Eleitoral informou ter recebido, na última quarta-feira (21), a notícia de fato sobre o caso das apostas em Riachão do Jacuípe e encaminhou na tarde do mesmo dia as informações à Polícia Federal para investigação de potenciais crimes eleitorais e conexos. Por sua vez, a Policia Federal disse que investiga o caso, mas não comenta até sua conclusão.
Não é só Riachão
O Ministério Público também disse que não recebeu informações da ocorrência dessa prática em outras cidades. No entanto, o CORREIO teve acesso a vídeos, áudios e relatos de moradores que confirmar a realização de apostas em diversos municípios da Bahia. Em Santo Antônio de Jesus, um homem que não se identificou aparece com R$ 30 mil em espécie para apostar com uma pessoa identificada como Raimundo.
“Eu voto em Rogério Andrade. Essa aposta tem que ser agora, em dinheiro. Fale onde você tá, que eu vou casar com você agora. Se for para amanhã ou segunda, tem mais”, disse o rapaz, que foi identificador como um vendedor de coco por populares. “As apostas aqui acontecem desde engradados de cerveja entre amigos a fazendas e grandes somas de dinheiro entre empresários. Soube de pessoas que foram a falência total com a perda da casa onde mora”, disse o morador Thiago Ribeiro, 30 anos.
Nessa segunda-feira (26), um vídeo circulou em redes sociais no qual um homem, com uma mala que possui R$ 300 mil, convida pessoas para fazerem apostas. “Eles não apareceram até agora para fazerem a aposta. Eu não vou ficar andando com uma mala de dinheiro. Vou depositar. Se alguém realmente quiser apostar, que venha até mim”, disse o rapaz, que não se identificou no vídeo e também não informou em qual cidade ou qual candidato ele apoia. Segundo o site Sudoeste Hoje, as imagens são supostamente de Ibicuí, de um apoiador do grupo da opsição.
Em Mairi, no centro-norte baiano, a estudante Isis Cedraz, 19 anos, aponta que alguns políticos tem o costume de dar dinheiro para as pessoas apostarem. “Aqui tem quem aposte celular, moto, carro e, claro, dinheiro. Mas na cidade também rodam boatos desde que eu era pequena que os candidatos dão dinheiro a pessoas de confiança deles pra apostarem, algo que acontece mais com os candidatos que já tinham o costume de apostar antes de entrarem de fato na política”, disse.
Em Nova Soure, no nordeste baiano, a estudante Vitória Machado presenciou uma aposta nesse final de semana. “É a forma de se fazer política. Nesse domingo, junto um monte de pessoas na praça de grupos adversários. Perto de mim tinha um rapaz que procurava alguém para apostar. … tem gente que aposta desde algo simples, como uma caixa de cerveja, até valores muito alto, como R$ 100 mil”, disse.
Vizinha a Nova Soure, em Ribeira do Amparo, dois vídeos circularam. No primeiro, duas pessoas identificadas como senhor Grilo e senhor Celisio apostaram suas motos. “Griilo deu 500 votos de frente para o atual prefeito”, disse o rapaz que narrava o vídeo, feito com o objetivo de registrar a aposta feita. Segundo moradores da cidade, quando alguém estabelece “votos de frente”, significa que ele aposta que o seu candidato vai ganhar com uma vantagem superior ao que foi acordado.
Não é legal
Segundo o professor da UniFTC, doutor André da Silva de Jesus, especialista em Direito Público e Eleitoral, as apostas não são legisladas pela justiça eleitoral e sim pela lei de contravenção penal, que aborda os jogos de azar e os consideram proibidos. “A lei diz que todo o ganho proveniente da sorte é considerado uma contraversão. Então, do ponto de vista eleitoral, não é errado. Mas é no âmbito penal”, explicou.
A pessoa que apostar não comete um crime, segundo o advogado, e sim um ato ilícito. “É como se fosse um ‘crime menor’, de menos potencial lesivo. É uma punição muito leve, que não chega a causar prisão. O máximo é multa e pagamento de cestas básicas ou prestação de serviço para a comunidade. A penalidade é brande e talvez por isso não haja medo de quem pratica essa conduta”, disse o doutor, que defende uma mudança na legislação eleitoral para se debruçar sobre esse tema.
“Quando há um candidato que incentiva essa prática, ele deveria ser punido. Tinha que ser criada uma punição na própria legislação eleitoral. Não se trata de abuso de poder econômico, mas sim de um tipo de marketing, de propaganda eleitoral que é feita e não prevista na lei, portanto irregular. Essas apostas são feitas para conseguir apoiadores”, afirmou André.
Por essa mesma linha pensa o cientista político Claudio André, especialista em política do interior e professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). “Do ponto de vista da estrutura política, só três cidades baianas possuem segundo turno. Essa regra incentiva as cidades pequenas a terem, em geral, apenas três candidaturas fortes. Isso cria um clima de polarização e a aposta reforça determinado candidato”, disse.
Claudio acredita ainda que a dependência que as cidades possuem na prefeitura fazem com que a campanha eleitoral no interior seja mais intensa e, consequentemente, as apostas também. “As prefeituras são o principal indutor de desenvolvimento local. Não há muitas outras oportunidades de emprego e o poder municipal ganha destaque. Ter acesso a prefeitura significa melhorar de vida. Há uma dimensão muito grande nisso”, concluiu.
Não é só na política
A cultura das apostas no interior não se limita às campanhas eleitorais. Foi em Mairi, que os jovens Dayhô Dourado e Nathan Oliveira apostaram R$ 50 numa corrida de cerca de 5 km, no contorno da cidade. O acordo foi selado em setembro e, após a informação correr o WhatsApp, pessoas que eles nem tinham intimidade estavam apostando muitas fichas em um ou no outro.
“Meu irmão, confiando em mim, apostou R$ 300. Teve um rapaz de um povoado que apostou R$ 200, e mais um monte de gente… Por baixo, a corrida movimentou uns R$ 2 mil”, contou o estudante Dayhô, 20 anos, para João Gabriel Galdea, que mantém a coluna Baianidades no CORREIO.
Já em Santa Bárbara, o morador Niverton Lima contou casos curiosos de apostas: “Um rapaz da cidade, quando não tinha nada pra fazer, sentava no ponto de ônibus e buscava alguém pra apostar as marcas de carro que mais passavam pra Feira ou pra Serrinha. Se era Volks, Fiat ou Chevrolet”, disse,
“Tinha um que sentava numa mesa de bar e ficava olhando… Marcava um lugar (com giz ou o que tivesse), dava 5 minutos e dizia que se sentasse uma mosca naquele espaço de tempo, ele ganhava; se não sentasse, ele perdia, e normalmente, vencia”, disse o rapaz.
O fenômeno é explicado pelo cientista político Claudio André como algo cultural: “Tem um fator sociológico. As pessoas tem como hábito criar apostas. Existe uma cultura disso que está na nossa sociedade. Não é só na política, mas também no futebol, por exemplo. Tem apostadores que contratam pesquisas para saber como está a disputa. Existe um nível de organização paralela relacionada a aposta”, disse o professor.
* Com oirentação da chefe de reportagem Perla Ribeiro.