Primeiro encontro de trios da história: o dia em que Moraes Moreira, ao lado de Dodô e Osmar, deu de cara com o Trio Novos Baianos

Trio Novos Baianos em registro de 1980 (Foto: Arquivo Histórico Municipal / Secult) 

Quando o caminhão sem adereços e de aparência um tanto obscura escalou a Ladeira da Montanha, o tom já era de despedida entre os trios Tapajós e Dodô e Osmar. Em uma terça-feira de Carnaval que parecia chegar aos últimos acordes, entre a Rua Chile e a Avenida Carlos Gomes, a carreta surpreendeu os inventores do trio elétrico ao adentrar a Praça Castro Alves. Mesmo assim, ao lado do parceiro Dodô, com Moraes Moreira de convidado, o atencioso Osmar pegou o microfone improvisado que utilizava para fazer discursos e ofereceu boas vindas:

– Olha aí, Tapajós… Chegou agora o Trio Novos Baianos para se juntar ao nosso encontro!  

Em um volume desmedidamente superior, a ponto de muita gente ter levado as mãos aos ouvidos, Paulinho Boca de Cantor respondeu ao chamado.

– Alô, Osmaaaaaaaaaaaaaaaaarrrrrrrrrrrrrrrr!!!

A praça do poeta não seria mais a mesma. Estamos em fevereiro de 1976 e o primeiro encontro de trios elétricos da história dos carnavais assistia à modernização do seu mais importante equipamento sonoro. De improviso, os Novos Baianos levaram para as ruas um trio com aparelhagem jamais vista na maior festa popular do planeta. Com potentes caixas de som, ao invés das tradicionais cornetas acústicas, pela primeira vez se utilizou amplificação de voz durante a execução das músicas.

Era um sonho novobaiano que se realizava. Tanto que, um ano antes, em 1975, Moraes Moreira, já em carreira solo, usou o mesmo microfone usado por Osmar para se tornar o primeiro cantor de trios, até então apenas instrumental. Era comemoração do jubileu de prata dos caminhões elétricos. Moraes voou nas asas do Pombo Correio e mudou para sempre a história do Carnaval.. “Ele também sonhava cantar para um grande público como o de trio elétrico. E assim sonharam Baby, Paulinho e todos Novos Baianos; a ponto de Moraes colocar uma letra em Pombo Correio, composição de Osmar”, confirmou o poeta e compositor Luiz Galvão, um dos integrantes da banda, em um texto publicado no Facebook.

A relação de Moraes e dos Novos Baianos com o Carnaval é de antes disso tudo. Em 1974, eles foram para a avenida no chão, cantando no gogó, tocando percussão e sem qualquer tipo de som amplificado. O bloco dos Novos Baianos foi puro improviso. “Colocamos uma corda lá e quem entrasse ia tocando”, lembrou Pepeu Gomes, no filme Filhos de João, de Henrique Dantas, sobre a trajetória da banda. Acontece que entre a saída desse bloco, em 74, e a primeira saída do Trio Novos Baianos, em 76, a genialidade de Moraes Moreira o tornou o primeiro cantor de trios, em 75.  

Moraes Moreira em um reencontro com os Novos Baianos em cima do trio, em 199: Homenagem ao aniversário dos Internacionais (Foto: Arquivo CORREIO)

Fez isso tentando realizar a antiga ideia novobaiana de cantar no trio. “Eu louco para cantar em cima do trio. Pegava o microfone de Osmar, que era apelidado de ‘meus amigos’ porque ele começava a falar com o público dizendo ‘meus amigos’. Era aí que eu pegava o ‘meus amigos’ e saía cantando Pombo Correio. Dodô quando via aquilo ficava puto. O trio só tinha agudo, bocas de alto-falantes”, lembrou Moraes, no mesmo filme. Mudaria para sempre a história do Carnaval.      

O fato é que, em 1976, ele viu o seu sonho amplificado por seus antigos parceiros. Naquela noite, a Castro Alves se rendeu a todos de uma vez: tanto os Novos Baianos quanto a Moraes Moreira com Dodô e Osmar, além do trio Tapajós. Claro, a diferença sonora do trio Novos Baianos ficou nítida. “O Moraes pra cantar de lá do trio de Osmar era muito difícil. Ele devia tentar cantar Preta, Pretinha com a gente, mas nós tínhamos som de voz amplificada”, lembra Paulinho Boca.

Imagem histórica mostra Trio Novos Baianos subindo a Ladeira da Montanha (Foto: Acervo Paulinho Boca) 

Na companhia de Paulinho e Baby Consuelo, a guitarra de Pepeu Gomes balançou o chão da praça como nunca antes. No dia seguinte ao encontro, os comentários deram conta de que uma “Radiola Estéreo” atravessou a avenida. “Se fôssemos comparar hoje, era um enorme aparelho de CD diante de um radinho de pilha”, comparou Valdemar Sandes, em entrevista ao CORREIO Repórter, em 2007.

Um dos principais construtores de trios elétricos, discípulo do próprio Tapajós, Valdemar foi o maior responsável pela introdução dos Novos Baianos no Carnaval de Salvador. A ideia de transpor para cima do trio a parafernália sonora utilizada em shows foi ousada. A intenção era aproveitar os equipamentos da apresentação que dos Novos Baianos fizeram às vésperas do Carnaval, no antigo Campo da Graça. “Trouxemos o som de São Paulo e só iríamos devolver dentro de mais alguns dias. Aí vislumbramos a possibilidade de usar o material em um trio elétrico”, revelou Galvão.

O próprio Osmar foi consultado pelo grupo e se negou a levar a ideia pra frente, mas acenou para o único sujeito disposto a realizá-la. Valdemar Sandes já defendia a necessidade de as carretas de som evoluírem sonoramente. “Disse a eles que aquilo estava superado, que era preciso mais qualidade. Para manter a tradição, Osmar desconsiderou. Foi aí que encontrei Os Novos Baianos com seu projeto revolucionário”, contou Sandes. O trio não tinha muita alegoria ou luzes. Tanto que alguns o apelidaram de “Morcegão” por ser todo apagado.

Equalizadores

Aquele ano, Osmar conservaria o tradicional carro alegórico com iluminação luxuosa, equipado com as bocas “Sedan” de alto-falantes, onde se ligavam um cavaquinho elétrico e um violão de seis cordas, além do microfone para os discursos da família Macedo. O sistema sonoro do Trio Novos Baianos era aparelhado com mesa de som de 16 canais e equalizadores “PA”, ligados a vários instrumentos, com microfonia perfeitamente audível.

O trio foi construído de forma improvisada. Parte da lataria do caminhão foi moldada às pressas, com maçarico. As caixas de som foram amarradas com cordas de sisal, nas laterais do trio. “Ficou feio, desfigurado e sem iluminação. Mas o importante é que saiu”, valorizou Sandes. Os protagonistas da engenhoca não se dão conta, mas o desfile novobaiano em 1976 provocou transformações radicas no Carnaval. Baby Consuelo se tornaria a primeira mulher a cantar em cima de um trio. Paulinho o primeiro a cantar de forma amplificada.  

“Não podemos esquecer a importância que teve nosso saudoso técnico de som, Salomão, que desencarnou sorrindo, já depois do grupo desfeito”, lembrou Galvão. Apesar de ter sido a primeira apresentação em cima de um trio, tudo ocorreu de forma orgânica. “Antes, quando incluímos o chorinho em nosso trabalho, Armandinho já dera a Pepeu a afinação certa do bandolim, e Jorginho vinha praticando o cavaquinho. Assim, não foi difícil chegarmos ao trio elétrico, com Dadi no baixo, Baxinho na bateria, Charles nos pratos, Bola no bumbo e mais o reforço de quatro caixas e três bumbos. O trio elétrico fez um som com personalidade”, contou Galvão.

Madrugada

O próprio horário da festa acabou se modificando depois daquela primeira noite. Costumeiramente, os caminhões se recolhiam antes que os relógios apontassem a quarta-feira de cinzas. O povão voltava para casa e os mais endinheirados seguiam a folia nos clubes. “Os Novos Baianos, com a sua oportuna irresponsabilidade, tocaram até o dia amanhecer. A partir de então a festa varou a madrugada”, garantiu Sandes. Ainda que separado do grupo, sempre prestigiando Dodô e Osmar,  Moraes teria subido no Trio Novos Baianos alguns Carnavais depois.

Segundo relato de Galvão, isso teria ocorrido no ano comemorativo aos dez anos da banda, em 1979. Era a formação original em pleno Carnaval da Bahia. Bem depois, em 1990, os Novos Baianos teriam novamente Moraes ao seu lado em uma homenagem ao aniversário do bloco Os Internacionais. O fato é que, com os Novos Baianos, o frevo instrumental, hegemônico até então, abriu espaço para o afro, o ijexá e o rock. Pepeu Gomes fez solos de Jimy Hendrix e Bily Cogan em plena avenida. Os conhecidos sucessos dos Novos Baianos vieram acompanhados de versões de Refazenda, de Gilberto Gil e releituras de antigos carnavais, como Corre, Corre Lambretinha, de Braguinha.

Outro registro do Trio Novos Baianos, agora mais enfeitado (Foto: Divulgação)

“Assim abriram caminho para a expansão dos trios elétricos, responsáveis diretos por uma verdadeira reciclagem no carnaval da Bahia”, confirma o escritor Carlos Calado, no livro Tropicália, a História de uma Revolução Musical. Do Campo Grande à Avenida Sete, da Ladeira de São Bento ao Corredor da Vitória, Os Novos Baianos foram protagonistas de momentos apoteóticos nas ruas de Salvador.

“Marcantes foram os encontros dos trios Dodô e Osmar e Novos Baianos, nas madrugadas de terça de carnaval para quarta-feira de cinzas, com a presença de Caetano Veloso e Moraes Moreira. No ano em que saiu a música Festa no Interior, Gal Costa também marcou presença. No finalzinho dessa fase, antes do carnaval axé, Gilberto Gil nos deu o prazer da sua presença”, narra Galvão. O Trio Novos Baianos foi algo inesquecível até para quem não viveu.

A saída de Moraes, o fim da banda e a retomada

Foi de repente. O intérprete de Preta, Pretinha comunicou aos amigos sobre a inadiável mudança para um apartamento na Zona Sul do Rio, com a mulher e os filhos. Os Novos Baianos moravam em uma comunidade, o Cantinho do Vovô, um sítio em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Moraes sugeriu manter ensaios diários no sítio, mas a proposta não foi aceita. A comunidade pretendia se manter coesa.

“O clima ficara estranho de uma hora para a outra”, observa Galvão, no seu livro Anos 70, Novos e Baianos. A partida de Moraes é um choque, o preâmbulo de uma fase de declínio. Pepeu Gomes nega-se a finalizar o LP Vamos pro Mundo. A birra é contornada e a parceria se sustenta por mais algum tempo. Lançam também “Caia na Estrada e Perigas Ver”, em 1976, com a releitura de “Brasileirinho”, de Waldir Azevedo.

Mesmo enfraquecidos pelas embrionárias carreiras solo de Pepeu, Baby e Paulinho, Os Novos Baianos ainda gravam Praga de Baiano, disco recheado de frevos e sambas carnavalescos. O último trabalho, Farol da Barra, gravado em 1978, traz como faixa-título uma parceria inédita de Galvão e Caetano Veloso. Oficialmente o grupo foi extinto em 1979.  

Mas não era o fim definitivo. A sintonia imutável resistente ao tempo e às escolhas de vida de cada um. Em 1997, quase 20 anos depois do fim, Galvão consegue reunir a formação original da banda. Não há sequer ensaio para que os músicos voltem a se entender no palco. “Parece que fomos tomar um café e voltamos”, disse Paulinho Boca ao CORREIO Repórter, em 2007. O show na Concha Acústica do Teatro Castro Alves abriu a turnê, levada também para fora do país. Os Novos Baianos fizeram apresentação de gala na vigésima noite do aclamado Festival de Jazz de Montreux, na Suíça.

Em poucos meses de parceria, gravaram o disco “Infinito Circular”, testamento vivo da imortalidade. Em 2009, Os Novos Baianos, sem Moraes, retornam ao Carnaval de Salvador, do qual participam outras vezes. Em 2006, fizeram três apresentações na reabertura da Concha Acústica, que passou por uma reforma. Na verdade, seriam dois shows, um sábado e outro domingo. Mas a procura foi tão grande que eles subiram ao palco novamente na segunda-feira. “Até hoje nos perguntamos sobre essa química. Não sabemos de onde vem”, reconheceu Pepeu, em entrevista ao CORREIO Repórter.

Novos Baianos: uma esbórnia sonora

Cada um dos integrantes dá a sua contribuição ao mosaico de influências. Antônio Carlos de Moraes Pires Moreira, o Moraes Moreira, confia o interior sertanejo à voz caipira e aos arranjos agrestes no violão. No outro extremo está o carioca Pedro Aníbal de Oliveira Gomes, o Pepeu, um guitarrista hendrixiano que submete o mais pesado rock´n´roll à graciosidade do chorinho. Galvão, agrônomo e poeta, enraíza a região de Juazeiro nas letras traduzidas em inquietos jogos de palavras.

O irmão de pepeu, o baterista Jorginho, também é cooptado pela caravana de sons, que revela ainda o baixista Dadi e o percussionista Baixinho. A devassidão sonora de Pepeu une-se matrimonialmente ao vocal lascivo de Bernadete Dinorath Carvalho Cidade, a Baby Consuelo, uma niteroiense com sotaque e espírito baianos. Casaram-se no palco e na vida. “Todos eles eram os temperos indispensáveis para aquele prato proteinado”, opina o cantor e compositor Tom Zé, responsável pelo primeiro contato de Galvão com Moraes.

São tempos de indecência no tabuleiro depravado da cultura marginal. Cozinha-se Tropicalismo e João Gilberto com choros, afoxés, tangos, sambas, e toda a parafernália elétrica, desde Jimmy Hendrix a Dodô e Osmar. Transporta-se tudo para as ruas de Salvador, e de cima do Trio Elétrico Novos Baianos expõe-se verdadeira orgia musical em plena Praça Castro Alves. No Carnaval, sem vestígios de sentimento de culpa, a esbórnia sonora ganha cores e alegria.