Gamil Foppel: ‘Delações da Lava Jato são ilegais’
“Eu abro a minha boca com toda a tranquilidade e digo que todas as delações da Lava Jato são ilegais”. A afirmação, de encontro ao senso comum, é do advogado baiano Gamil Foppel. Doutor em Direito Penal Econômico e reconhecido como um dos maiores especialistas do país na área criminal, ele tem convicção de que a maior operação de combate à corrupção da história do Brasil viola o princípio de legalidade.
Durante a conversa com o jornalista Donaldson Gomes, no programa Política & Economia no Instagram do CORREIO ( @correio24horas ), Foppel analisou o sistema penal brasileiro e falou sobre mudanças que são discutidas na área. O advogado é professor da Universidade Federal da Bahia e é membro das comissões de Reforma do Código Penal, da Lei de Execuções Penas e da Lei de Lavagem de Dinheiro, no Congresso Nacional.
“O juiz só pode aplicar penas que estão previstas em lei. E se você pegar as condenações da Lava Jato, você tem lá 16 anos em regime semiaberto domiciliar, 15 anos em regime semiaberto especial. Isso não existe, no Código Penal você tem os regimes aberto, fechado e semiaberto”, diz. “O que a Lei do Crime Organizado previa é que para o réu colaborador ou se aplica o perdão judicial ou a redução de pena de um a dois terços”, lembra.
Foppel recorda que o perdão judicial retiraria o apoio da opinião pública à Operação, enquanto a redução de pena em dois terços não faria diferença nas sentenças que estavam sendo proferidas na operação. “Estavam dando penas de 600 anos, se reduzisse em dois terços, o delator iria cumprir 200 anos. Com isso, estão sendo aplicadas penas não previstas em lei”, afirma.
O jurista lembra que, por mais acaloradas as discussões que o Direito Penal desperte nos leigos, cabe aos operadores do Direito tomadas de decisões técnicas. “A história vai cobrar nas biografias, o tempo vai cobrar de cada um de nós o que fizermos. Aqueles que se omitiram, aqueles que emudeceram quando deveriam se manifestar, vão responder por isso”, acredita. “Eu desafio qualquer um, qualquer professor de Direito Penal, a discutir onde é que se aplica uma pena não prevista em lei só porque é a Operação Lava Jato”.
“A gente precisa deixar claro que as garantias fundamentais são do interesse público, pra gente não ficar pensando que de um lado é a sociedade e do outro, o infrator”, defende. “Os direitos do investigado são direitos do interesse coletivo”, ressalta.
Para o advogado, por mais que as investigações tenham resultado na recuperação de ativos, isso não justificaria quebrar as regras das garantias fundamentais. “Não adianta dizer que recuperaram R$ 7 bilhões, mas feriram o princípio da legalidade. Não pode. Violaram o devido processo legal, não pode”, ressalta. Ele acredita que muitos defensores da Lava Jato se “apaixonaram por argumentos sem amparo legal”.
“Faz parte da função que nós professores e advogados exercemos cumprir a chamada missão contra majoritária, ou seja, a gente precisa falar o que as pessoas não querem ouvir. As vezes temos que escrever o que as pessoas não querem ler. E ao fazer isso, atraímos uma série de insatisfação”, avalia.
Foppel ressalta que não se pode transformar os processos em escrutínio da opinião pública. “Se fizéssemos hoje uma enquete sobre a redução da maioridade penal, a sociedade iria pedir redução para 12 anos, não seria nem 16. Seguramente a pena de morte passaria no Brasil. Mas uma das funções do Direito é ser contra majoritário”, destaca. “Justamente para garantir o direito de todos, muitas vezes é necessário contrariar a vontade da maioria das pessoas”.
Segunda instância
O advogado Gamil Foppel acredita que as decisões judiciais favoráveis à prisão de condenados em segunda instância desrespeitam a Constituição Federal. “A Constituição não deixa margem para dúvidas, a prisão no Brasil só pode acontecer com o trânsito em julgado, quando não houver mais qualquer margem para qualquer recurso”, diz. Para Foppel, o próprio Ministério Público admite não ser possível prender em segundo grau legalmente, ao pedir que a prisão em segundo grau fosse incluída no regramento legal do país, nas Dez Medidas contra a Corrupção. “Eu fico me perguntando quantas pessoas leram aquele arquivo de 94 páginas e quantas entenderam o que estavam assinando”, afirma.
Segundo ele, entre as medidas constava uma que era a permissão da prisão em segunda instância. “Pense bem, o Ministério Público Federal pede à sociedade que assine um documento para permitir que eu prenda a partir do julgamento em segundo grau. Ou seja, ele está dizendo que hoje não pode prender em segundo grau”, analisa. “Se pudesse prender, eles não estariam pedindo para alterar a lei”.
“Ao Judiciário é dado o direito de interpretar a Constituição, mas não de dizer quando ela vale e quando ela não vale”, diz o advogado. “Se formos permitir que qualquer membro do Poder Judiciário diga quando é que a Constituição vale, vamos permitir que o Judiciário diga quando sua casa pode ou não ser invadida, porque as regras para flexibilizar a inviolabilidade do domicílio estão na Constituição”, destaca.
O jurista baiano defende a necessidade de respeitar o princípio da presunção de inocência, previsto na Constituição. “Eu sempre falo para os meus alunos que uma das coisas mais fáceis e mais difíceis ao mesmo tempo é a gente ser coerente”, diz. “Pode haver, e não raramente existem, dispositivos legais dos quais eu discorde, mas as leis gozam de presunção de legitimidade, de constitucionalidade. Com isso, existem certas alterações que só podem ser feitas por lei. Por mais importante que um juiz seja, que uma juíza seja, ninguém está acima da lei”, destaca. O advogado explica que o princípio da legalidade é o que impede a tomada de decisões arbitrárias.
“Há certos assuntos que só podem ser alterados por lei. E quando a gente pega a Constituição está lá escrito que ninguém pode ser condenado até o trânsito em julgado da sentença. Com isso eu estou dizendo que você pode abrir a boca para dizer que o dispositivo constitucional está errado, que precisa ser reformado (…). Eu divirjo desse entendimento, para mim a Constituição Federal está correta. Mas o que ninguém pode fazer é subverter a interpretação da Constituição ou, a propósito de interpretá-la acabar reescrevendo-a”, pondera.
Para o jurista baiano, a grande maioria dos envolvidos nos processos judiciais buscam um julgamento justo, mas reconhece a existência de eventuais injustiças. “Ocorrem eventuais injustiças, mas eu não atribuo a uma conduta intencional. Seres humanos são falíveis. Nós advogados erramos, promotores erram, juízes erram e é por isso que existe um sistema recursal que permite que as matérias sejam revisitadas por julgadores que não estão próximos à causa”, analisa. “Eu não posso transformar uma anormalidade em uma regra. A grande maioria dos juízes que eu conheço e que vejo nas decisões tem o propósito de acertar, mas o erro é da essência humana. Erramos em nosso dia a dia, mesmo sem querer”.
Gamil Foppel acredita que há muito a se corrigir na legislação penal brasileira. “Nosso Código Penal é de 1940 e entrou em vigor em 1941. Você imagine uma legislação feita com a mentalidade das pessoas que viviam 70 anos atrás”, destaca. Se lá para cá, houve reformas pontuais na legislação, o que para o jurista causou problemas. “O grande problema de se fazer pequenas reformas, reformas pontuais, é que quebra a homogeneidade, a simetria e a coerência do Código”, explica.
Setentão, o Código Penal ainda estabelece como crimes situações que não fazem mais sentido nos dias atuais, diz o advogado. “O Código ainda trata de coisas risíveis, coisas que só existiriam no anedotário florense. Por exemplo, perturbação de enterro. Nós temos por exemplo o crime de vadiagem. Tem muitos entulhos de infrações que de nada servem enquanto outros bens jurídicos precisam ser colocados”, explica.
Ele lembra que em 2012 participou de uma comissão jurídica no Senado Federal, com outros 14 professores de Direito, que produziram um estudo sobre um novo novo regramento penal para o Brasil. Houve uma interrupção no processo e a matéria está parada no Senado. No caso da Lei de Execuções Penais, foi composto um grupo de juristas, que também já concluiu os estudos sobre a atualização. Agora, o baiano participa de uma comissão com 43 membros, composta pela Câmara dos Deputados, para analisar possíveis atualizações na Lei de Lavagem de Dinheiro.
“Por mais que se alterem os dispositivos legais, os artigos da lei, a tarefa de análise da lei é humana. São homens e mulheres que dão significação de algo que está previsto em lei. E, como dizia mais cedo, podem acontecer erros”, diz. Ou seja, ele acredita que as reformas vão contribuir para corrigir erros na legislação, mas para Foppel, “elas não vão ser decisivas para alterar ou evitar os erros dos sujeitos processuais – membros do Judiciário, do Ministério Público e da Advocacia”.