Venda de vinhos dispara no Brasil durante a pandemia e produtores tentam segurar o novo consumidor


Mês de julho bateu recorde histórico de vendas, mas agosto teve desaceleração; produtores apostam no dólar alto para que consumidor perca preconceito com vinhos brasileiros e passe a comprá-los com maior frequência. Vinhos: crescimento das vendas dos finos brasileiros foi de 93% entre janeiro e agosto contra o mesmo período do ano anterior.
Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Não houve ano melhor para a venda de vinhos no Brasil que 2020. Diferente do restante da economia, as políticas de isolamento social contra a disseminação do novo coronavírus tiveram papel importante para impulsionar os negócios.
Com o setor de eventos paralisado e fechamento de bares e restaurantes, o vinho ganhou espaço ao se tornar a escolha de bebida para momentos de lazer em casa.
Dados da Ideal Consulting mostram que a comercialização mensal da bebida entre março e julho deste ano triplicou, alcançando 63,4 milhões de litros – no mesmo período de 2019, foram 21,3 milhões. Foram os meses em que o isolamento foi mais forte no país. De janeiro a agosto, foram 313,3 milhões de litros, 37% mais que no mesmo período do ano passado.
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A exceção foram os espumantes, muito ligados às festas e comemorações. No período, houve queda de 5% nas vendas, de 9,3 milhões para 8,8 milhões de litros.
Os números dão conta da venda de vinícolas para supermercados, lojas e restaurantes, somando importações. Captam, portanto, a formação de estoque e não a venda na ponta.
De qualquer forma, trata-se do melhor resultado da série histórica. O recorde mensal de julho é 32% maior que a melhor marca anterior à pandemia, de outubro de 2019.
O desafio de produtores de vinhos, agora, é manter a clientela. Dados de agosto mostraram uma queda de 21% em relação ao mês anterior, escancarando uma desaceleração do setor junto com a abertura da economia.
“Esse volume de crescimento não vai se manter, mas deve cair para um patamar acima do que estava em 2019”, diz Felipe Galtaroça, CEO da Ideal Consulting.
“Foi como um chicote: subimos, encontramos erros e acertos e, agora, vem uma nova fase”, afirma o especialista.
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Batalha de preços
O dólar mais alto tornou o vinho brasileiro mais competitivo nas gôndolas e animou bons produtores. Neste ano, a moeda americana subiu cerca de 40% em reais, elevando o preço dos importados por aqui.
Resultado é que, até agosto, o crescimento das vendas de vinhos finos brasileiros foi de 93% no intervalo contra o ano anterior.
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O aumento expressivo do segmento, contudo, vem de uma base muito baixa. A fatia dos vinhos finos brasileiros é de apenas 6% do mercado. Quem domina as vendas é o vinho de mesa (67%), feitos com variantes de uva mais baratas e para os quais muitos especialistas na bebida torcem o nariz.
São os finos que tentam bater de frente com produtores vizinhos, como Argentina, Chile e Uruguai, e que têm ampla procura de quem aprecia a bebida. Os tradicionais europeus – da França, Portugal e Itália, em especial – também costumam ter preços competitivos.
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Divulgação
Em geral, os importados ganham o duelo. Mas o câmbio fez a fatia dos estrangeiros cair de 32% para 27% do mercado, de janeiro a agosto. Quem se esforça para ganhar mercado, comemora.
“Estou muito otimista. Tenho ouvido de clientes experimentados que não deixamos a desejar contra vinhos internacionais de mesmo padrão de qualidade. Isso nos dá certeza que a segunda compra será nossa”, afirma Fabrizia Zucherato, diretora executiva da vinícola Guaspari.
Além da procura maior, a vinícola da cidade de Espírito Santo do Pinhal, interior de São Paulo, quer aproveitar o interesse nos vinhos brasileiros para desenvolver o enoturismo. Reaberta em meados de outubro, a agenda para grupos que queiram conhecer os vinhedos lotou até o fim do ano.
“As pessoas estão viajando para mais perto e estamos a duas horas de São Paulo. Até durante a semana passamos a receber visitantes”, diz Fabrizia.
Também saíram vencedoras desse período as vinícolas como a Salton, que têm portifólio de produtos variado. Produtora de sucos, vodka e vinhos, a companhia teve crescimento apurado de 40% até aqui, mesmo com 40% dos rendimentos baseados em espumantes.
“A aceleração que tivemos nos vinhos se manteve, com ganhos de mercado acima do projetado. Com a reação dos espumantes desde agosto, será um bom último quadrimestre do ano, que sempre foi importante para nosso faturamento”, afirma Maurício Salton, presidente da empresa.
Maurício Salton: vinícola teve aumento de 40% das vendas, mesmo com redução de procura por espumantes.
Divulgação/Eduardo Benini
Novos hábitos
O clima quente, os altos preços, a dificuldade de importação e uma produção incipiente são fatores que sempre afastaram o Brasil de se tornar uma grande referência no mercado mundial.
A estimativa da Ideal Consulting é que o consumo em ano recorde tenha chegado próximo a 2,8 litros per capita neste ano. Autoridade mundial na estatística, a Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV) traz números ainda menores. Em 2018, último dado disponível, o brasileiro bebeu apenas 2 litros de vinho em 12 meses.
A diferença com outros mercados é considerável. O líder do ranking foi Portugal, que teve consumo de 62 litros per capita naquele ano. Franceses beberam 50 litros em média. Italianos, 44 litros. Argentinos, 25 litros. Em outras palavras: a cada garrafa bebida por um brasileiro, mais de 30 são consumidas por um português.
Não bastasse a distância, o Brasil quer crescer em um momento em que o consumo da bebida no mundo todo vem caindo. Em 1995, quando começou a série histórica da OIV, a líder França tinha consumo de 77,8 litros per capita. A Itália, 73,2.
“O mercado brasileiro abriu para os vinhos finos há 30 anos, quando o [presidente] Collor liberou importações. Antes, era só porcaria. Vamos melhorar o consumo, o paladar e a produção, mas demora um pouco ainda”, diz Gustavo Andrade de Paulo, presidente da Associação Brasileira de Sommeliers de São Paulo (ABS-SP).
O especialista garante que a evolução dos produtores nos últimos 10 anos surpreende e faz frente com similares estrangeiros. Além do Rio Grande do Sul, destaca que há ótima produção se desenvolvendo na Serra Catarinense, em polos no Nordeste e na Serra da Mantiqueira.
Ainda assim, reconhece que europeus, argentinos e chilenos sempre terão um melhor “terroir”. O termo técnico é usado para definir os fatores naturais que dão identidade à produção de vinhos, como a variação de temperatura, regime de chuvas e as características do terreno onde a uva é plantada. É o microcosmo que dá sabor ao vinho e característica única a cada garrafa.
“O brasileiro sabe fazer vinho, mas tem que correr atrás do prejuízo, enquanto outros países têm a natureza ajudando”, afirma o sommelier. “Não dá para pegar um grande Bordeaux, um Borgonha, que tem 3 mil anos de história, contra os 30 anos que temos. É sacanagem tentar comparar.”
Gustavo Andrade de Paulo, da ABS-SP: associação realizou lives durante a pandemia e faz cursos para que público tenha contato com cultura do vinho
Arquivo pessoal
Barreiras tributárias
Ainda que precise de maturidade, o obstáculo unânime para o mercado, de acordo com apreciadores e produtores, é o preço. Uma boa garrafa de vinho fino nacional não sai por menos de R$ 40 – e para cima, o céu é o limite.
Da quantia, cerca de metade é retida em impostos, o que faz com que produtores joguem a culpa do valor pago pelo consumidor no fator tributário.
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A produção latina da vinícola Chandon serve de exemplo das distorções. A marca possui produção na região de Mendoza, na Argentina, e outro polo em Garibaldi (RS), no Brasil. O que é produzido na unidade argentina da marca abastece todo o mercado da América do Sul, exceto aqui. O Brasil exporta apenas para o Japão.
Em resumo: é mais interessante ter uma operação dupla no continente do que lidar com os encargos e redução da competitividade.
Procurada, a empresa reconhece que há barreiras tributárias no país, mas afirma que as vinícolas têm quase 50 anos de produção e são resultado de uma busca da matriz por terroirs próprios para a produção de espumantes. Nesse sentido, o que se encontra no Brasil e na Argentina é diferente.
“Cada portfólio tem a ver com nível de maturidade de cada mercado, o paladar, a penetração da categoria etc. Claro que tem a questão de impostos, benefícios fiscais, e a relação de comércio entre os países influencia a decisão. Mas o ponto de partida é o perfil do consumidor”, diz Gabriela Moreno Sanches, diretora de marketing e comunicação da Moët Hennessy Brasil, responsável pela marca Chandon.
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E há uma nova ameaça à vista: o acordo entre União Europeia e Mercosul. Hoje, vinhos europeus são taxados pela importação em 27%, e espumantes em até 35%, segundo a Comissão Europeia. Os impostos devem ser zerados no comércio do setor, em prazo a ser definido, colocando pressão enorme na produção brasileira.
“Além de novas alíquotas de ICMS e IPI, estamos negociando um plano em que o governo retornará impostos para que possamos reinvestir na cadeia, como modernização de vinhedos, compra de equipamentos e marketing”, afirma Deunir Argenta, presidente da União Brasileira de Vitivinicultura (Uvibra).
O setor reclama também da falta de linhas de crédito pensadas para atender a necessidade do produtor de vinhos, um problema antigo e que passa por uma série de outros setores da indústria.
IPO à vista
A pandemia do novo coronavírus também colocou em evidência o comércio eletrônico – e o mercado de vinhos acompanhou a tendência.
Para Felipe Galtaroça, da Ideal Consulting, o país tinha boas empresas com grau de digitalização para se sair bem na quarentena. “É impressionante como o mercado evoluiu. Há pouco tempo, era um ambiente todo familiar, passaram a vir investidores e, agora, há um IPO à vista”, afirma.
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A primeira oferta pública de ações (IPO, o lançamento inicial de ações de uma empresa na bolsa de valores) do setor será da Wine. A empresa se notabilizou pelo clube de vinhos por assinatura, com mais de 178 mil associados, mas possui operação de vendas online e, desde 2019, atende em lojas físicas.
O dinheiro captado – espera-se algo em torno de R$ 1 bilhão – será usado para ampliar as operações, comprar concorrentes, investir na distribuição, marketing e tecnologia. Procurada, a empresa não concedeu entrevista para respeitar o período de silêncio exigido pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a quem vai se lançar na bolsa de valores.
Ari Gorenstein, Co-CEO da Evino: A previsão de vendas para o ano todo é de R$ 400 milhões.
Divugação/Jussara Martins
Mas os planos são seguidos de perto pelos concorrentes. A Evino, especializada no e-commerce de vinhos, angariou uma base de 500 mil clientes ativos, com aumento de 140% de público entre o segundo trimestre deste ano contra o do anterior. O faturamento até setembro foi 72% maior que nos primeiros nove meses de 2019.
“O brasileiro descobriu novas ocasiões para abrir uma garrafa e o online passou a ser usado para maior proteção de saúde. Somos nativos digitais e soubemos atender a essa demanda”, diz Ari Gorenstein, Co-CEO da Evino.
Segundo a empresa, o aumento da frequência de compra foi de 50%. “Para o futuro, queremos encantar o cliente. Criar uma fidelização tanto pela comodidade como pela riqueza de informação para que ele beba melhor”, afirma o executivo.
Na Grand Cru, a transformação teve que ser mais intensa. Conhecida importadora e com a maior parte do faturamento vinculado à venda para restaurantes e lojas próprias, a empresa fez um esforço de transformação digital para continuar vendendo na pandemia. O e-commerce, que começava a se estruturar no início do ano, passou de uma participação de 8% para 20% do faturamento da empresa.
“A captação de clientes por meio digital cresceu 10 vezes. As lojas reabriram e entramos nos supermercados. Em setembro, crescemos 30% em relação ao mesmo mês do ano passado”, afirma Alexandre Bratt, diretor comercial da Grand Cru.
Com empresários investindo pesado na evolução do mercado, resta o básico: saber se o brasileiro continuará disposto a beber mais.
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