Setor de entretenimento, principalmente o da música ao vivo, ainda agoniza dramaticamente

Indubitavelmente, muitos se recordarão da grata surpresa de uma música repentina que trouxe afeto impensado em um momento inesperado, ecoando pelas desérticas ruas no entardecer da cidade recém-acometida pela pandemia. Se lembrarão com calor no coração, dos olhares já entorpecidos pelo som, buscando a origem da sacada de se apresentar em uma varanda até então desapercebida. Talvez nem todos se apercebam que esse grito de socorro na forma de arte somente trouxe à tona a maneira de lidar com os problemas de um dos setores mais afetados pela atual pandemia, o do entretenimento, que dentre suas diversas vertentes, a da música ao vivo ainda agoniza dramaticamente.

De um lado os músicos, sem vínculo de trabalho formal diante da pluralidade de locais em que tocam, e com a escassez de recursos do auxílio emergencial, trouxeram leques de opções ao se apresentarem em sacadas, nas lives e ao disponibilizarem os collabs (gravações remotas). O engajamento dos moradores das proximidades e as doações através dos QR Codes inseridos nas performances também auxiliaram, cada um à sua maneira. Shows nas áreas comuns de condomínios com público nas janelas possibilitaram restritas contratações, e poucos conseguiram ajustes em um formato praticamente descartado, o drive-in.  De outro lado as casas de shows, que inobstante a perda repentina de faturamento, ainda foram obrigadas a devolver parte substancial dos recursos em caixa, posto que referentes a apresentações que foram postergadas pelo advento da pandemia. Nestes casos não se trata, como em outros ramos, de perda significativa de receita, mas de ausência total de recursos há mais de 6 meses… sem ingressos, suportaram notavelmente as insuportáveis despesas de aluguel, ITPU, pessoal, fornecedores, dentre incontáveis outras que sequer se cogitou qualquer sorte de redução ou postergação. 

Nesse contexto, vale refletir sobre locais – e principalmente a mentalidade e atitudes visionárias das pessoas por trás deles – que sempre trataram os artistas com respeito, de forma profissional, honrando cachês, horários, equipamento, alimentação e conforto, bem como sempre reconheceram a verdadeira simbiose entre contratante e contratado, haja vista que coincidentemente os que assim antes agiram, conseguiram superar essa primeira etapa da tormenta e reabrir as portas. Nos 25 anos em que toco na noite paulistana, dentre os quais passei por casas como o Bourbon Street, Bar Brahma e Blue Note, afirmo categoricamente que este triunvirato se enquadra em todos os adjetivos acima descritos. 

O Bourbon, contudo, vai além, deveria ser tombado pela cidade de São Paulo, não apenas para o consequente – e esperado – alívio da carga tributária em reconhecimento ao esforço descomunal de seus responsáveis em trazer artistas de renome e fazer festivais em parques e ruas da cidade, mas por exponenciar e valorizar a cultura musical de forma única. Quando em 2001 pisei pela primeira vez naquele palco sagrado e consagrado desde sua inauguração em 1993, pelo antológico show de B.B. King – que lá se apresentou quase 10 vezes –, a energia do lugar não apenas foi contagiante, como a alma da música dos que por lá passaram (Ray Charles, Joss Stone, Diana Krall, Nina Simone, dentre inúmeros outros) certamente se fez presente, propiciando apresentações verdadeiramente mágicas para os músicos e a platéia.

E mesmo sendo o ícone de um segmento há quase 3 décadas, o lendário Bourbon Street foi obrigado – como todos – a se reinventar para as recentes reaberturas, todavia, capitaneado com maestria, além de proteger seus colaboradores, prestigiando-os, inclusive, nas reformas necessárias para as adaptações para a reestreia, inovou ao inaugurar um novo espaço diurno e vespertino, integrado à calçada e à rua, o Bourbon Street Jazz Café. O fato é que todos, sem exceção, foram obrigados a se inebriar de alguma maneira para enfrentar a quarentena, sendo que a música certamente esteve presente nessa árdua tarefa, sem, contudo, que a integralidade de seus consumidores demonstrasse a devida gratidão àqueles que se doaram através de suas expressões musicais. Passou da hora dos atuais mecenas aflorarem e tornarem a fomentar concretamente o segmento investindo e patrocinando as casas e os artistas – até porque há incentivo fiscal para tanto –, sendo que os que não se enquadram nessa categoria podem cumprir o seu papel divulgando e compartilhando em suas redes sociais os trabalhos independentes que de alguma forma despontem qualquer sorte de emoção, sob pena de ceifar artistas do presente relegando-os ao passado, pois como ressaltado por Pablo Picasso: “a arte que não estiver no presente jamais será arte”.