‘Não toco mais’: terapeutas abandonam o toque depois de escândalos com gurus

Toque tem passado por modificações depois de denúncias contra gurus

Um dos pontos vitais do corpo, o ponto hara na tradição oriental, fica a quatro dedos abaixo do umbigo. É considerado terapêutico tocar essa região, onde existe uma espécie de reservatório de vitalidade, na tradição oriental. “Eu não toco mais. O terapeuta está inseguro e o cliente, desconfiado”, conta Tom Oliveira, criador do Atman, estúdio de ioga e meditação de Salvador. Os centros baianos de terapias alternativas  têm mudado procedimentos ou excluído o toque depois de denúncias de abuso sexual contra gurus e terapeutas.
 
Os terapeutas de práticas alternativas ouvidos pelo CORREIO disseram que as alterações nos protocolos de atendimento e a consequente exclusão – ou mudança – de técnicas previnem “mal-entendidos”, reforçam padrões éticos já utilizados e não comprometem as práticas. O toque corporal, no contexto das terapias integrativas e da própria medicina tradicional, é um meio para identificar problemas e soluções. No caso da tradição indiana, quem toca ajuda a desbloquear energias aprisionadas para equilibrar o corpo de quem é tocado. 
 
As primeiras mudanças nos estúdios de ioga, meditação e afins começaram a ser pensadas depois das mais de 300 denúncias de estupro contra o então líder religioso João de Deus e das acusações de abuso sexual contra o guru Sri Prem Baba, ambas em 2018.  Em agosto passado, Jair Tércio Cunha Costa, líder da Casa Maçônica também foi acusado de abuso sexual e está foragido. Neste mês, ex-alunas e pacientes denunciaram Tadashi Kadomoto, um dos mais reconhecidos guias de meditação, de estupro. Ele nega.

Qualquer ato libidinoso, não só penetração, praticado sem o consentimento da outra pessoa é considerado estupro, segundo o Código Penal Brasileiro. 

Quando saíram as primeiras denúncias contra o então líder espiritual João de Deus, Tom Oliveira lembra de ter tido, coincidentemente, uma reunião com o advogado, como costumava ocorrer. Naquela noite, conversaram sobre como os pacientes passariam a se sentir mais vulneráveis. O advogado remendou que Tom evitasse tocar nos pacientes e alunos, homens ou mulheres, durante a aplicação de técnicas que pedem o toque, como as de liberação energética por meio do corpo – derivadas da bioenergética e de heranças orientais. 

Quatro técnicas foram reformuladas para o terapeuta não tocar no paciente desde então, no Atman. Em uma delas, o paciente era colocado sobre um banco, prendia a respiração e dizia quais eram os pontos de dor. O terapeuta tocava nas áreas doloridas para desfazer o bloqueio. Os pontos em questão poderiam ser o peito ou a barriga, por exemplo.

“Hoje, eu  peço que a pessoa  se conscientize da sua dor. Tem até uma vantagem, porque, no toque, a pessoa é tratada passivamente. Agora ela é orientada a perceber. Nós estamos em um novo tempo e questionar é positivo. Eu considero positivo o que está acontecendo e cabe a nós nos reinventar”, comenta Tom. 

Os instrutores de ioga, guias de meditação, massagistas, e toda uma corrente de profissionais envolvidos nas chamadas práticas integrativas e complementares – reconhecidas pelo Ministério da Saúde como procedimentos complementares aos tradicionais – não estão reunidos numa só classe. Há de psicólogos e  fisioterapeutas a pessoas que fizeram cursos técnicos. 

As terapias alternativas não são recomendadas, nem reconhecidas pelo Ministério da Saúde, para curar ou tratar traumas psíquicos. Os conselhos regionais de Psicologia e Fisioterapia, que reúnem alguns destes profissionais, afirmaram não possuir nenhum protocolo voltado para profissionais que atuem com práticas integrativas e que os respectivos códigos de ética já exigem o respeito à intimidade e pudor.  

A variedade na formação impede um protocolo específico de recomendações e inviabiliza uma contagem das denúncias. Cada um, na prática, tem criado os próprios códigos. Terapeutas que pediram anonimato pensam em espalhar câmeras nas salas de atendimento para se protegerem de eventuais denúncias. Os clientes e pacientes seriam avisados da vigilância antes.

Falar, não tocar
Quando um aluno precisa, eventualmente, ajustar a posição no Yoga Bahia, estúdio criado em 1999, em Salvador, o instrutor faz as orientações verbalmente. Se o toque é necessário, explica Marcos Aquino, fundador da Casa, “o professor anuncia o contato e, obviamente, jamais faz isso em qualquer região que possa constranger ou ser mal interpretada” – barriga, seios e glúteo, por exemplo. 

As restrições são adotadas desde a fundação do espaço, conta Marcos, referência na formação de ioga no país, mas estão mais intensas depois dos escândalos de abusos sexuais cometidos por gurus. A rigidez e a preferência pela palavra, ao invés do toque, frisa o professor, não comprometem o aprendizado e os benefícios das técnicas, como a redução da ansiedade.

“Atenção temos há décadas não só para respeitar os limites físicos durante a  prática do ioga, como também ao transmitir os conteúdos de forma adequada para que isso seja saudável  para o corpo e para mente do praticante”, compartilha Marcos, ao comentar o impacto das denúncias na rotina e na formação de futuros profissionais.

Durante o processo, os instrutores assistem a filmes sobre escândalos com gurus – como Holly Hell, que conta a história de um guru conhecido como Michel, nos Estados Unidos, acusado de abusar sexualmente homens e obrigar mulheres e abortar – e são orientados a evitar envolvimento com alunos e alunas. 

O toque é enxergado e apropriado de diferentes maneiras, em diferentes culturas. Os ocidentais prezam pela objetividade, e, com isso, a palavra e a audição ficam acima das outras linguagens, explica Lucrécia Greco, doutora em Antropologia, professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e pesquisadora do ciclo de antropologia do corpo de Bueno Aires.

 “Existe uma grande colonização da linguagem humana, em que a fala é colocada acima de outras experiências. Enquanto isso, nas experiências orientais, o tato é compreendido como uma forma de comunicação entre os seres humanos, a natureza e a espiritualidade e é vista como um dos processos de cura”.

A antropóloga  acredita  que as reivindicações sobre o próprio corpo – sobretudo com o avanço do feminismo – têm papel fundamental e positivo para um novo posicionamento em relação ao toque. Quem toca? Como? “Estão problematizando a licença. A pessoa precisa saber o que será feito com ela e é preciso haver a humildade para aceitar isso”, acredita ela, que ressalta a importação da problematização, sem que signifique “a anulação do toque, desde que com respeito”.

O toque sexualizado
“Não tem como não afetar. Fica aquele lugar: em que eu posso confiar? Em mais ninguém”, afirma Rajan Irineu, terapeuta tântrico. A massagem tântrica é caracterizada por toques sutis em toda a extensão do corpo, inclusive no genital, e é uma das três técnicas utilizadas pela terapia tântrica – há, ainda, a meditação e técnicas de respiração, não só a massagem. “Esse lugar é  delicado, pois não temos uma compreensão dessexualizada do toque”, acredita Rajan.
 
A terapia tântrica é inspirada – não há registros escritos sobre ela – numa das seis vertentes clássicas do ioga, o tantra-ioga, e é voltada para desenvolver a energia sexual, considerada pelo tantra como a energia vital. Desde 2015, quando iniciou a carreira, Rajan adaptou algumas técnicas para repensar o toque.  

“Não temos uma compreensão desexualizada do toque”, diz Rajan Irineu, terapeuta tântrico (Foto: Leandro Tupan/Divulgação)

As mulheres não são tocadas nos seios e nos mamilos. Ele também tem deixado cada vez mais claro como funciona a massagem, quais serão os toques e se o cliente concorda. Rajan pensa em adotar termos de responsabilidade para que os clientes reconheçam quais seriam os toques e como aconteceriam. O mineiro Deva Nishok, considerado o introdutor da terapia tântrica no país, em 1996, é acusado de abusar mulheres. O guru nega os crimes.
 
A massoterapia – terapia necessariamente a base de toques – também tem sido readequada.  Antes do atendimento, a massoterapeuta  Camila Leal  pergunta se o cliente tem alguma restrição. Nunca toca nos seios, nem no glúteo. Se massageia um homem, não tateia as coxas e pede que ele esteja de short. 
 
Existe, no caso de Camila, dois temores: a resposta do outro ao toque e a própria segurança. Numa clínica que trabalhava, um cliente, que sempre agendava sessões de massoterapia noturnas, disse a Camila que tinha ficado excitado durante uma sessão. “Tive que ficar mais rígida para que as coisas ficassem bem claras”, diz. 

Mestre idealizado pode gerar relação ‘desvirtuada’
Historicamente, estúdios de ioga, salas de medição, e toda uma sorte de técnicas de vertentes orientais formam ambientes em que a espiritualidade e intimidade física se misturaram. Há, por isso, outro elemento a ser considerado –  o poder daqueles instrutores, dos mentores e dos guias espirituais que são elevados a posições de gurus, considerados mestres com um profundo entendimento de alguma linhagem filosófica-espiritual ou um guia à auto-realização. 

 
A relação entre alunos com mentores pode levar a uma transferência maciça da figura do mestre,  explica Ivete Santos, psiquiatra e professora de Psiquiatria da Universidade Federal da Bahia (Ufba).“Embora em todas as relações terapêuticas exista transferência, que é no que aquela pessoa pode te ajudar, nestes casos podem se chegar a locais de ainda mais idealização”, explica.

Bikram Choudhury, craidor do Bikram Yoga, é acusado de estupro por alunas e é foragido dos EUA (Foto: Joan Adlen/Getty Images)

A espiritualização de práticas como o ioga tem a ver com o próprio surgimento do ioga. No início do século 19,  depois de um movimento reformista da religião hindu, o ioga nasce como um método e passa a ser introduzido nos Estados Unidos e América do Sul, com roupagem religiosa. 

O ioga é uma técnica e até é entendida como a parte experimental e prática do hinduísmo, mas nunca é a religião em si. Hoje, existe um movimento que tenta desvincular ioga da religião – um dos efeitos buscados é romper com essa aura sacra que pode favorecer constrangimentos, traumas e abusos físicos e psicológicos. 

“Temos a obrigação de nos apresentar como prestadores de serviço.  A história recente dos ‘gurus’ famosos vem se mostrando desastrosa já que muitos tentaram mostrar que eram divindades e não foram poucos os problemas resultantes dessa relação desvirtuada”, defende Marcos Aquino do Yoga Bahia.

 Como as alunas podem estar em condições de vulnerabilidade psíquica, a situação pode ser ainda mais grave. “A pessoa pode nem entender que houve abuso ou, se entender, se sentir culpada porque seus gurus foram colocados como divindades”, continua Ivete. 

Nos discursos das vítimas, aparecem relatos parecidos com os descritos pela psiquiatria – um misto de vergonha e culpa que revela o poder exercido sobre elas e, diretamente, seus corpos.