Vida de criança é humilhação, agora também nas redes sociais

“Eu te amo” vive nas bocas, mas raramente nos atos. Principalmente em relação às crianças, esses pequenos seres trabalhosos, provocativos e cheios de fragilidades dos quais adultos costumam se aproveitar. Porque sim. Pra apenas rir ou descarregar frustrações de um jeito que nenhum outro adulto suportaria, pra exercer perversões e um conceito de “poder” distorcido. Humilhação é uma palavra que define as “medidas educativas” e “brincadeiras”, de modo geral.

São tantas as camadas dessas relações que o que nos parece “aceitável” ainda é, muitas vezes, grave. Basta parar pra pensar nas consequências: não raro, adultos passam suas vidas tentando curar (ou machucando os outros por causa de) feridas lá da infância, causadas por pessoas que deveriam ser conforto e paz. Precisamente, pai e mãe. Esse pessoal que nem sempre é bacana, mas que todo mundo precisa “honrar”. Discordo. Tem pai e mãe que merece. Outros, são lixo. E uma multidão deles está aí nas redes sociais ajudando a naturalizar o fato de que crianças têm o último lugar na nossa perversa hierarquia social.

Existem limites e dispositivos legais, mas quem liga pra acionar? O nosso “senso de humor” corrompido prefere comentar, curtir e compartilhar o choro desesperado da filha de uma, o “castigo bem dado” no filho de outro, os pedidos de desculpas de uma criança entre lágrimas, a “pegadinha” da mãe que enfia a cara do próprio filho no bolo de aniversário. O menino reage, claro, provocando comentários do tipo “garoto mal educado”, “se fosse meu, apanhava” e outros expoentes desse sadismo coletivo do qual crianças sempre foram vítimas, porém agora com registro em vídeo e áudio.

Esse tipo de vídeo virou mania nacional e ninguém toma qualquer atitude concreta, ninguém tenta parar de verdade. Nem quando um passante grava a crise nervosa de uma criança, diante de uma mãe controlada, num ponto de ônibus, não sei de que cidade. Gravam, opinam (“bate nele, moça!”) e publicam nas redes sociais. Tudo absolutamente “normal”. Menos o comportamento da criança que “deve apanhar”, evidentemente, de acordo com a opinião geral. Assim como “devem apanhar” todas as que revelam, em seus atos, o ambiente de desajuste onde nasceram e crescem, completamente desamparadas.

Também é “falta de porrada” qualquer atitude julgada “incômoda”, ainda que totalmente natural para a idade. Sempre há algo a ser “corrigido”, algum tipo de humilhação a aplicar por quem, normalmente, ignora o processo e, evidentemente, está redondamente enganado. Investe-se tanto no “chá de revelação”, “quartinho do bebê” e afins, mas tão pouco na imprescindível preparação de mães e pais. Muitos, não conhecem sequer as fases da infância e suas demandas, mas grande parte ama vigiar, punir e humilhar. Agora, inclusive, para ganhar “likes”, “seguidores” e “inscritos no canal”.

Educar? Acolher? Escutar? Honrar? Verbos em falta no riquíssimo mercado de “cuidados” e “necessidades” infantis. Eu tenho vergonha desses adultos e pena dos pequenos reféns expostos agora, também, no picadeiro virtual. Esses vídeos são provas, registros de crimes. No futuro, falarão de uma época. Talvez, sejam assunto em reuniões familiares onde essas crianças, já crescidas, poderão mostrar exatamente o motivo pelo qual não conseguem se vincular aos próprios pais.

Será lindo isso. Torço pelo dia em que parentes não vão poder defender maternagens sádicas e paternidades raivosas. Espero ansiosamente pelo tempo (e ele chega) no qual as coisas estarão bem explicitadas. Aí, então, agressores não poderão dizer que “era pro seu bem” porque estará tudo posto, terapeuticamente exposto, para quem quiser ver. Nesse momento, culpas filiais poderão ser ultrapassadas, vidas poderão ser vividas e famílias disfuncionais tranquilamente abandonadas. Porque o lado bom é que a maldade estará pública e escancarada.

Feliz Dia das Crianças, amizade. E se você é desses que andam morrendo de rir dos “micos infantis”, mandando bater nos “mal comportados” e tendo ideias “geniais” sobre como constranger gente de pouquíssima idade, tenta olhar direitinho para a criança que tá aí na sua tela ou ao seu lado. Seja ela filho ou filha, enteada, sobrinho, neta ou uma completa desconhecida, é sua obrigação pelo menos buscar entender o conceito de respeito e proteção que a lei exige de você. Isso, sabendo que até criança mais “insuportável” ainda é melhor do que alguém que, mesmo adulto, não entendeu nada. Vai te fazer bem reformatar esse “humor” miserável e perceber a sua própria covardia. É um primeiro passo. A forma como tratamos as crianças diz muito sobre nosso nível de civilidade. Coletivo, sempre. E individual, em todos os casos.