O que está por trás da disputa dos países pela vacina e o que a Bahia tem a ver com isso?

Na semana passada, quando a Rússia anunciou ter registrado e iniciado a produção da primeira vacina contra a covid-19 do mundo, ficou ainda mais evidente que a corrida dos países para o desenvolvimento de uma substância contra o vírus não é só uma questão de imunidade. Na Bahia, três vacinas de diferentes nacionalidades estão sendo testadas em voluntários e o governo estadual já deu sinal de que tem interesse no produto russo. Mas o que está por trás dessa pressa e disputa geopolítica? O que a Bahia ganha com isso?
Diferente do que aconteceu com a grave epidemia de Ebola, em 2013, na África Ocidental, esta pandemia de coronavírus afetou simultaneamente a economia de todos os países desenvolvidos, o que fez com que quase todas os governos, empresas e universidades das grandes nações apertassem o passo nos estudos em busca do remédio.
Coordenador do Núcleo de Práticas em Economia e Relações Internacionais da Unifacs, Felippe Ramos batiza a situação atual de “ebola dos ricos”. “Em epidemias ou pandemias em períodos anteriores, não se afetou o globo inteiro porque o mundo não era globalizado como é hoje. Esta é a primeira pandemia, de fato, globalizada e ela afetou todos os países ricos do mundo de uma vez só. China, Japão, Itália, EUA, todos estão com as economias fechadas”, explica.
Na observação do professor, o incentivo a essa corrida pela vacina envolve principalmente cinco questões: salvar vidas, demonstrar poder com o pioneirismo científico, resolver a crise financeira mundial, recuperar a estabilidade política dos governos e retomar a estabilidade geopolítica — ou seja, a volta das boas relações socioeconômicas entre a comunidade internacional.
As empresas farmacêuticas são grandes interessadas neste processo basicamente porque o público potencial para a vacina é justamente o mundo inteiro: 7,8 bilhões de pessoas. Já as universidades querem produzir ciência e os governos desejam a reabertura da economia o mais rápido possível. “Os governos sabem que para permanecer no poder eles precisam resolver esse problema e isso leva a uma corrida pela vacina”, detalha Ramos.
E há ainda outro ponto: os países participantes desta maratona estão numa disputa por construção de poder simbólico. Com a politização da pandemia, justamente pela existência do conflito entre os EUA e a China, as relações que já não eram boas ficaram ainda menos colaborativas. O presidente Donald Trump apelidou o novo coronavírus de “vírus chinês” e, sem provas, chegou a dizer que o vírus teria escapado de um laboratório da China, numa tentativa de culpabilizar o país.
Para poder desfazer essa fama pejorativa, Ramos relata que a China tem corrido atrás de promover uma diplomacia, ofertando EPIs, respiradores e conhecimento técnico aos demais países para o enfrentamento da pandemia. Ao ver essa atitude, o governador Rui Costa, por meio do Consórcio Nordeste — criado para orientar governadores da região durante a pandemia —, chegou a enviar uma carta à Embaixada da China no Brasil pedindo que a nação enviasse insumos de enfrentamento à covid-19 para os estado nordestinos, mas a solicitação não foi atendida.
Como antes mesmo da pandemia o governo Bolsonaro havia optado por se alinhar estrategicamente com os EUA, deixando para trás o protagonismo em blocos econômicos como o Mercosul e o BRICS, o Brasil acabou ficando isolado na política externa, aponta o professor. Por causa disso, os governadores dos estados tiveram que construir sozinhos as suas relações internacionais.
“No início do governo o presidente [Jair Bolsonaro] estava mais voltado para o Sul, Sudeste e Centro-Oeste, já que o Nordeste não havia ajudado a elegê-lo. Os governadores do Nordeste, então, montaram o Consórcio Nordeste com o objetivo principal de estabelecer negócios com a China, que é o principal comprador de commodities em todo o Brasil, e isso começou a produzir um maior protagonismo de governadores”, observa.
Mestre em Relações Internacionais pela Ufba e pesquisador do Centro de Defesa e Segurança do Cimatec, Milton Deiró Neto acredita que os estados brasileiros têm buscado se engajar mais acirradamente com laboratórios estrangeiros para ter opções à disposição e não apostar todas as fichas numa única vacina. “Até porque uma pode dar certo ou não, ou dar certo só parcialmente”, justifica.
Professora do programa de pós-graduação em Relações Internacionais da Ufba e coordenadora do grupo de pesquisa Labmundo, Elsa Kraychete explica que os acordos para testagem de vacinas na Bahia são apenas o início da trajetória de colaboração e o mais importante para a construção de um legado é a disponibilização de recursos, cientistas e laboratórios para que o estado e, claro, todo o Brasil, possam acompanhar o percurso tecnológico até chegar na vacina.
“Então, o legado não é tão imediatamente. Se pensarmos num legado de longo prazo, para além da vacina, com essa parceria vingando, novos projetos virão. Pode ser um ganho científico muito importante para a Bahia, para o Nordeste, para o Brasil. Não é um ganho da Bahia exclusivamente, é um ganho do Brasil”, acredita.
Felippe Ramos também acredita que esse legado das colaborações científicas entre Bahia e as nações estrangeiras ainda é sutil, principalmente porque essas parcerias institucionais podem ser facilmente revertidas após a pandemia. Numa troca de governo, se o governador eleito não tiver interesse ou habilidades para a política internacional, essas relações podem ser desfeitas. “Ainda está cedo para falar em legado, mas a avenida foi aberta, está dada a possibilidade de que outros governadores no futuro venham a fazer cada vez mais política internacional”, avalia.
Para ele, a importância da construção dessas relações é principalmente a atração de investimentos. Se antes governadores ficavam mais ligados a questões internas dos seus estado e a atração de investimentos internacionais dependia do que o governo federal fazia, isso pode inspirá-los a buscar acordos mais diretamente.