Em dificuldade, JaymeFigura tenta concluir sua grande obra: a Pirâmide dos Orixás

Irrompe na telinha do celular uma coleção de ralos de pia, selados por arames e alfinetes de fecho, daqueles usados em fraldas de pano. A distorção da câmera e o pacote móvel de internet deixam a imagem inquieta, oscilante. Dentro daquele amontoado estético, JaymeFigura não perde tempo. “Estou fudido, cara. A covid desgraçou minha vida. Depois de Collor de Mello e do Macintosh é a pior coisa que já aconteceu”, diz.

A ligação por chamada de vídeo é um pedido do próprio artista plástico, alternativa a uma ligação convencional oferecida pelo repórter. Entre o culto à sua figura metalizada e o apelo desesperado não pairam dúvidas quanto sua real intenção, ainda que o narcisismo não desapareça por completo mesmo diante da penúria.

“Eu estava prestes a estourar com uma exposição forte com sete cabeças e sete bustos de Exu. Fiquei três dias no Museu de Arte da Bahia (MAB) e depois seria a vez do Museu de Arte Moderna (MAM). Ia vender cada peça por R$ 2.500 até R$ 3.000. Quando a pandemia veio, fechou tudo”, conta.

JaymeFigura durante conversa por chamada de vídeo durante a pandemia (Foto: André Uzêda)

JaymeFigura é um personagem andarilho que compõe o cenário urbano e o imaginário coletivo de Salvador há pelos menos duas décadas e meia. Numa pesquisa rápida em sites de buscas é possível encontrar quatro páginas completas de referências, que vão desde reportagens, perfis, música, documentários, entrevistas na televisão e até meras especulações sobre sua real identidade.

Em 2007, neste mesmo CORREIO, o jornalista Pablo Reis escreveu um minucioso e elaborado perfil sobre Jayme. Na ocasião, teve a oportunidade de ver o protegido rosto do irreverente artista, um privilégio circunscrito a poucos familiares e amigos muito próximos.

“Ao fim de aproximadamente uma hora e meia de conversas, perguntou se eu queria ver o rosto dele. Foi algo como se uma garota perguntasse se eu queria encerrar a noite na casa dela”, relembra Pablo sobre o contato feito há 13 anos no ateliê, antes de completar a história:

“Com algum receio, eu disse que sim. Ele retirou o elmo e eu vi um rosto mais jovem do que a idade alegada na época. Um cara mulato de traços mais para uma pessoa branca, com nariz afilado e pele lisa. Era penumbra e durou menos de dois minutos antes de ele se despedir e colocar de novo o capacete. Aquilo me marcou pois eu percebi que ele só faria, na época, diante de quem confiasse”.

Exu feito por JaymeFigura para exposição no Museu de Arte Moderna (Foto: Acervo JaymeFigura)

Atropelo e pirâmide
Jayme não é mais o mesmo. Há quatro anos foi atropelado na Avenida Carlos Gomes, quando comemorava, em 2016, a reeleição do atual prefeito ACM Neto (DEM) – de quem se diz um profundo admirador.

As sequelas imediatas foram costelas fraturadas, jamais tratadas corretamente, que o impedem de continuar carregando a armadura com o mesmo vigor. No auge da forma, na versão mais turbinada, a couraça de madeira e ferro pesava até 40 quilos. Hoje, feita de pano e material reciclável, tem entre dois a três quilos.

“Essa roupa de pano é ridícula. Não impõe o mesmo respeito. O pano esquenta mais do que a madeira e o ferro. Minha vida se desgraçou depois do atropelo, cara. Tenho dificuldade de continuar trabalhando em minhas obras. Sinto muita dor”, diz Jayme.

JaymeFigura antes do acidente, com armadura que pesava até 40kg (Foto: Acervo JaymeFigura)

Entre as muitas reportagens produzidas sobre esta intrigante figura há uma série de elementos desencontrados ou ainda que frontalmente se contradigam entre um texto e outro. A grafia correta do nome, a idade precisa e o local de nascimento, por exemplo, se engalfinham num jogo possibilidades. Jayme parece acreditar que os mais ínfimos mistérios alimentam o fascínio sobre seu passado.

“Vou deixar bem claro. Meu nome é Jaime Andrade Almeida. Mas meu nome artístico é JaymeFigura, tudo junto, sem espaço. Nasci no dia 2 de janeiro de 1959. Estou perto de completar 62 anos. Sou católico, embora tenha uma relação com o candomblé. Sou ligado a Exu e Omolú. Minha cabeça é de Oxum (orixá vaidosa)”, sentencia, no que jura ser uma narrativa final sobre si mesmo.

Sem poder trabalhar no sarcófago (nome dado ao ateliê que mantém no Pelourinho), por conta da pandemia, Jayme está alojado na casa de familiares em Sussuarana Velha. Os amigos criaram uma campanha na internet para doação de dinheiro. Uma parte dos recebidos é usada para compra do revange, remédio para atenuar as dores agudas nas costelas – uma caixa com 20 comprimidos custa, em média, R$ 50.

Cartaz para ajudar JaymeFigura na campanha de arrecadação de dinheiro

Outro quinhão é gasto na compra de ferro retorcido. JaymeFigura tem um projeto ambicioso. Quer construir, em Mar Grande, na Ilha de Itaparica, uma enorme pirâmide dedicada aos orixás. 

“Eu vou fazer algo que ninguém fez. Fazer a mesma pirâmide que tem no Egito, igualzinha, daquele mesmo tamanho. Já tenho até o terreno. Muita gente duvida que eu consiga. Mas eu vou fazer, sim”, promete.   

Antes da arquitetura egípcia tomar forma, o mascarado não recusa uma volta ao passado para relembrar as três pragas que o condenaram à reclusão. Além da recente covid-19, Collor de Mello e Steve Jobs nomeiam as outras duas restantes.

O primeiro aparece como responsável pelo confisco da caderneta de poupança, no período que foi presidente do Brasil (1990-1992); enquanto cabe ao norte-americano a criação de uma bem-sucedida linha de computadores pessoais.

“Eu tinha carro próprio, ganhava 15 salários criando marcas, layout e publicidade. Collor de Mello me levou tudo. Passei a andar como um mendigo. Eu fazia tudo manualmente, desenhava no pincel mesmo. Quando veio o computador Macintosh queriam fazer tudo nele. Descartaram os desenhistas. É por isso que até hoje prefiro o Windows”, repele.

 Mesmo com uma vida não convencional, Jayme conta que faltam apenas três anos para se aposentar. Diz também que, quando a Pirâmide dos Orixás estiver pronta, terá concluído sua grande obra na terra. “Nada vai ser igual depois disso”.