Triste Bahia!

Confesso às senhoras e aos senhores que, certa feita, em meio à pandemia, furei o isolamento aqui em Brasília para ouvir música baiana na casa de um amigo, também baiano, jurista de primeira e músico de alto gabarito. Parecíamos o povo escravizado que fugia para o quilombo para fazer música, cultuar seus santos e resistir. Mutatis mutandis, era nossa resistência ao degredo dos tempos de hoje.

 
Nesse dia, fumávamos charutos de altíssima qualidade, considerado inclusive a melhor produção do Brasil, que é feita no Recôncavo Baiano. Nessa mesma noite, nosso petisco era pipoca branca e cocada feita artesanalmente na Bahia. Lembro de quando ouvimos a música Triste Bahia de Caetano Veloso e então chegamos à conclusão de que em meio ao caos, tínhamos trazido a nossa Bahia para Brasília. 
Olhando para trás, a conclusão que chego hoje é outra: a gente não transporta a Bahia, ela permanece lá e cada um de nós a reverencia como se ela toda estivesse contida em cada parte que sai de lá.  

Contudo, advirto: sempre existirá quem contenha mais a Bahia do que outros tantos baianos. Jorge Portugal, professor, ensaísta, músico, poeta, secretário de cultura e compositor continha a Bahia em si mais do que tantos outros baianos. 
É século XVII, Gregório de Matos, o Boca do Inferno, escreve o soneto denominado “À cidade da Bahia”, mais conhecido pela sua primeira exclamação denominada Triste Bahia! Mais de três séculos depois, Caetano Veloso lança a canção Triste Bahia apresentada no Álbum Transa no ano de 1972.  Hoje, 03 de agosto, dia da capoeira, morre Jorge Portugal, patrimônio cultural da Bahia que tanto contribui com a Cultura e Educação deste estado. 
Peço licença ao Mestre Jorge para utilizar este espaço do CORREIO, muito bem ocupado por ele incontáveis vezes, para lhe prestar esta homenagem. Eu, oriundo de escola pública consegui ingressar na Ufba graças a seus ensinamentos. Uma geração passou pela mão de Jorge. Jorge ensinou muito mais do que o português escrito, Jorge lecionou cultura a uma geração. Ensinou a correlacionar a arte com o real. Em seu magistério, a ancestralidade viva do povo brasileiro se comunicava com o tempo presente. 

Em meio a um momento triste da humanidade, Jorge se despediu da sua alegre Bahia que só é triste quando triste está em estado passageiro, tal qual agora. Em suas aulas, textos e falas, Jorge ia à África para mostrar mais do que a capoeira do Brasil.
Mas o fato que parece é que Jorge estava cansado de viver aqui na Terra. O mundo da Bahia está triste. O povo de Jorge e o povo de santo mais triste ainda. A bandeira branca enfiada em pau forte não balança no dia de hoje. 
 
Quanta cultura Jorge nos ensinava. Seu Jorge, amado, de Santo Amaro partiu! Triste Recôncavo! Com Estrela do Norte tatuada em seu peito, Jorge descansa sob a proteção da Virgem Mãe Puríssima. 

Entoada em ritmo de capoeira e ao mesmo tempo dos atabaques de terreiro, a Triste Bahia do Veloso simboliza o sentimento de toda a comunidade mais negra fora d’África no dia de hoje! Descanse em paz Mestre Jorge Portugal, que de colonizador somente carregava o sobrenome. 

Diego Pereira é doutorando e mestre em Direito pela UnB. É Procurador Federal (AGU) e autor da obra Vidas interrompidas pelo mar de lama (Lumen Juris, 2018). Professor em Curso de Direito, costuma escrever sobre direito, literatura e cotidiano.