Por onde anda? Ex-goleiro do Bahia, Renê vira dirigente em time de Santa Catarina

Santa Catarina é um estado peculiar onde a atividade econômica não fica concentrada na capital (a cidade mais populosa, inclusive, é Joinville e não Florianópolis) e isso reflete também no futebol. Embora dispute entre si a hegemonia do campeonato estadual, a dupla Avaí e Figueirense convive com uma realidade na qual os únicos títulos além das fronteiras do estado foram conquistados por times do interior, caso do Criciúma campeão da Copa do Brasil de 1991 e da Chapecoense com a Sul-Americana em 2016. É nesse contexto que um ex-goleiro do Bahia quer fincar mais uma cidade catarinense no mapa da bola.
O desafio em questão cabe a Renê Marques, que jogou no tricolor em 2010, na campanha do acesso à Série A. O sobrenome, ele passou a utilizar publicamente após pendurar as luvas e iniciar a carreira de gestor de futebol no Barueri em 2013.
Hoje, aos 42 anos, Renê é diretor executivo do Juventus, um modesto time de Jaraguá do Sul, município economicamente relevante no polo têxtil catarinense, porém esportivamente mais conhecido pela equipe de futsal que fez sucesso na década passada carregando o nome da cidade. Ao menos por enquanto.
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Renê pendurou as luvas e virou dirigente |
O pequenino Juventus tem meta ousada a médio prazo: “Nosso trabalho é para chegar em 2024 na Série B do Brasileiro. Isso está escrito, está assinado por todos os membros que participam. Com metas, quem vai fazer e o prazo que tem para entregar”, declara Renê.
Entre a expectativa e a realidade há uma longa estrada a percorrer. O ex-goleiro foi contratado em novembro de 2019 para, através de sua empresa, dirigir o Juventus em uma parceria de 20 anos. A atual temporada já seria marcante, afinal se tratava do retorno da equipe à primeira divisão do Catarinense após seis anos.
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Juventus está nas quartas de final do Catarinense |
O início tem sido promissor. Logo de cara, o clube fez jus ao apelido de Moleque Travesso e bateu duas metas futebolísticas de curto prazo ao se classificar para as quartas de final do estadual, o que evitou o rebaixamento e garantiu vaga na Série D nacional em 2021.
Até que veio o novo coronavírus e com ele quase quatro meses de paralisação até o retorno no dia 8 de julho, com a realização dos jogos de ida das quartas de final. Segundo estado a retomar o futebol no país (após o Rio de Janeiro), Santa Catarina vivenciou uma experiência traumática: cinco dos oito times registraram casos positivos de covid-19, sendo 14 integrantes só no elenco da Chapecoense, o que acabou paralisando o torneio novamente antes das partidas de volta, agora marcadas para 28 e 29 de julho.
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Time do Juventus não teve caso positivo de covid-19 |
O Juventus não teve nenhum caso, e o agora dirigente credita isso à estratégia adotada. “Nós entendemos que se existe o ‘fique em casa’, que é o isolamento social, a decisão nossa foi de testar todos os atletas quando chegaram e criar uma bolha. Como o alojamento da base estava vazio, nós temos lá 23 quartos, trouxemos os atletas de volta e conversamos com eles da importância de se isolar e, depois de todos testados, cada um ficou em um quarto. Abrimos todos os vestiários, então ficamos com 32 chuveiros, 28 vasos sanitários… Nós criamos o nosso protocolo de segurança e deu certo. Não adianta nada o clube colocar tudo certinho e o atleta ir pra casa e sair para jantar num restaurante, ir numa barraquinha, a esposa ir no supermercado, porque ele traz para dentro do clube depois”.
FRANGO E FEIJOADA PELO WHATSAPP
A pandemia criou um cenário de crise no mundo inteiro e levou clubes de maior ou menor orçamento a se esforçarem na criatividade para gerar receitas e diminuir despesas em meio à queda inevitável de arrecadação. No caso do Juventus, situado em um município de população estimada pelo IGBE em 177 mil habitantes, se posicionar junto com a sua comunidade foi a saída encontrada pela diretoria.
E assim a conta oficial da agremiação no Instagram virou cardápio. Isso mesmo, cardápio: R$ 25 a feijoada aos sábados, com arroz, farofa e salada de acompanhamento; e R$ 35 o frango assado aos domingos. Reservas feitas através do WhatsApp e retirada por delivery ou no estádio João Marcatto, mesmo local onde o “ciclone bomba” que fez estragos no Sul do país no início do mês derrubou parte do encosto da arquibancada.
Foi lá também que o Juventus perdeu a primeira partida das quartas de final para o Figueirense por 2×1. Geovane Itinga, atacante emprestado pelo Bahia, fez o gol da equipe da casa, que vai precisar vencer em Florianópolis por dois gols de diferença no dia 28 para seguir adiante – por um, leva para os pênaltis. Se o time alcançar a final, garante vaga na próxima Copa do Brasil, que é a próxima meta de curto prazo.
“Nosso ataque é Itinga e Pablo, os dois que vieram do Bahia. Eu aproveitei minha proximidade, converso com Diego Cerri e com Jayme Brandão. Na época era o time do Dado (Cavalcanti)”, diz Renê, citando respectivamente o diretor de futebol, o gerente e o ex-técnico dos aspirantes do Esquadrão. Itinga está emprestado, enquanto Pablo rescindiu com o tricolor e assinou em definitivo. O técnico da equipe é Jorginho, outro ex-Bahia, além de Palmeiras e Portuguesa.
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Giovane Itinga está emprestado pelo Bahia ao Juventus |
Entre as ações de relacionamento, o clube também lançou uniforme comemorativo da classificação para as quartas de final e vendeu placa para o torcedor que quisesse ter sua foto presente na arquibancada durante o jogo – que por medida de segurança foi realizado com portões fechados.
“Tivemos um aumento de 88 para 798 sócios torcedores. Na Série B (do Campeonato Catarinense) tínhamos vendido 512 camisetas, na Série A vendemos 3.600. Nós trocamos o gramado; agora estamos reformando o salão de festas, que é uma tradição na cidade; criamos uma cozinha industrial. Tem empresa que não tem condição de patrocinar, não tem dinheiro para pagar, mas ela tem funcionários. Aqui tem uma marmoaria, por exemplo, que tem 12 funcionários. Esse cara compra de nós 360 marmitas por mês”, enumera o CEO Renê.
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Cozinha industrial nas dependências do estádio virou nova fonte de receita |
Dessa cozinha industrial hoje saem cerca de 200 marmitex por dia, além da venda avulsa de frango e feijoada nos fins de semana, o que gera receita otimizando a estrutura disponível no estádio para além dos 90 minutos de bola rolando. Está nos planos também a abertura de 18 lojas na área do João Marcatto, nos segmentos de esporte, saúde e alimentação.
“Quando eu assumi, consegui convencer a todos de que seria burrice utilizar o estádio só em dia de jogo. Este ano nós tivemos cinco jogos aqui. Por isso nós estamos criando vários departamentos de vendas e isso vai impactar diretamente no caixa. Nós estamos falando aí de R$ 150 mil líquido em novas receitas”, explica Renê Marques.
Pode parecer troco se o parâmetro do leitor for um Flamengo ou Palmeiras da vida, mas em um clube cuja previsão orçamentária para 2020 foi de R$ 2 milhões, caso do Juventus, representa 7,5%. Para 2021, com garantia de calendário cheio por causa da vaga na Série D, a estimativa do dirigente é ter um orçamento de R$ 5,5 milhões. Os patrocinadores são empresas locais.
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Lançada durante a pandemia, a venda de feijoada é anunciada no Instagram (Foto: G.E. Juventus / Divulgação) |
“O que mais nos reforçou aqui na parceria foi também saber a potência que é a cidade de Jaraguá do Sul junto ao setor privado e setor público. E sabendo que com apoio desses fatores o Juventus tem total condição de ser autossuficiente e ir fortalecendo no cenário do futebol”, declara Hudson Moura, presidente do futebol da Juventus e sócio de Renê, com quem conquistou o acesso estadual pelo Almirante Barroso em 2019.
A BASE COMO SUSTENTAÇÃO
Vida de CEO é entender que a bola na rede é só a última ponta do processo no futebol. Situações de âmbito comercial, jurídico e de marketing impactam diretamente na quantia disponível para montar um time forte e, consequentemente, conquistar os almejados títulos.
Renê descreve como “um clube associativo administrado como empresa” ao falar do modelo jurídico adotado pelo Juventus, que se autodenomina “o que mais cresce em Santa Catarina”. Por isso o planejamento estratégico prevê não só estar na Série B do Campeonato Brasileiro em breve, como ter 60% do elenco feito em casa.
“Nossa ideia é investimento na base para que em dois, três anos a gente tenha já atletas oriundos das categorias de base. Na base eu acredito que todo dinheiro gasto é como investimento”, afirma Renê.
Para isso, uma meta é conseguir o Certificado de Clube Formador (CCF) dado pela CBF. É com ele que o Juventus pretende se tornar assíduo na revelação de jogadores e ir pavimentando sua escalada. Aliado a isso, mira obter a Certidão Negativa de Débitos para poder captar recursos através da Lei de Incentivo ao Esporte, o que incrementaria financeiramente a engrenagem. Hoje, a soma de dívidas trabalhistas e tributárias dá R$ 3,6 milhões, montante que a diretoria pretende chegar a um acordo para renegociar e quitar.
O certificado é um selo que atesta a qualidade de determinada equipe em cumprir os requisitos legais para a formação de atletas no Brasil, mas não só isso. Garante, por exemplo, uma indenização caso um garoto deixe o clube com idade entre 14 e 16 anos, antes de assinar um contrato profissional, ou em outras situações estabelecidas na legislação.
É causa e também consequência. “Nós colocamos algumas metas que automaticamente iriam melhor a estrutura do clube. Para ter um certificado, você precisa ter uma cozinha digna, um alojamento digno, atletas estudando, segurança, acesso aos pais e responsáveis. Quando você tem um selo desse, os captadores começam a te trazer somente atleta de alto nível”, argumenta Renê.
A CBF distribui o certificado A, com validade de dois anos para quem cumpre além dos requisitos, ou B, válido por um ano para os clubes que só atendem ao mínimo exigido.
Em todo o país, apenas 40 clubes possuem o CCF, segundo a atualização mais recente da confederação, publicada em maio. Desse total, seis estão em Santa Catarina: Avaí, Figueirense, Chapecoense, Criciúma, Guarani de Palhoça e Tubarão. Na Bahia, só a dupla Ba-Vi.
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Renê quando era goleiro do Bahia, em 2010 |