Amigas criam grupo no Facebook para pagar boletos de desconhecidos
Um grupo de amigas, ligadas a cinema, artes visuais, literatura e teatro, conseguiu em tempo recorde, pouco menos de duas semanas, criar uma corrente virtual de solidariedade, em meio à pandemia do coronavírus. Até o fechamento dessa reportagem, o Boleto+1, abrigado no Facebook, reunia mais de 22 mil pessoas de todo o país, em sua maioria mulheres, mais de 60 delas de Salvador. “Imaginava que seria algo que não passaria muito do nosso quintal”, diz a cineasta Tatiana Nequette, uma das administradoras.
De um lado da tela, pessoas que precisam de ajuda. Do outro, quem pode e deseja oferecer apoio. O distanciamento físico? Só um detalhe. Acessando o grupo, mulheres contam com outras, dispostas a auxiliar no período de quarentena, pagando uma conta de luz ou de água online, via código de barras, fazendo doações em dinheiro, por transferência bancária, ou oferecendo visibilidade à venda de produtos.
Após ser apoiada pelo grupo de mulheres, uma delas, a baiana Joyce Correia, retornou para agradecer e oferecer a doação de roupas de seu filho mais velho a alguém que delas necessitasse. “Vocês são luz, são o motivo de acreditar que o mundo pode melhorar, agradeço a todos que me ajudaram, não só com comida e dinheiro, mas também aos que me ajudaram em oração”, escreveu em seu agradecimento. Depois de trabalhar como secretária e atendente em restaurantes, Joyce está desempregada.
Em quarentena, assim como todos os seus milhares de usuários, as administradoras do Boleto+1 têm se concentrado em dar conta da crescente demanda, já que a organização é fundamental para manter a credibilidade. E se preocupam agora em consolidar a rede, inserindo serviços considerados essenciais nesse momento. A intenção é formar uma equipe voluntária de profissionais de saúde (médicos, enfermeiras, psiquiatras e psicanalistas) para atendimento online.
Mais que um post
A rede de generosidade criada pelas “boleteiras”, como elas se autointitulam, teve origem em um post numa rede social, em 16 de março, e foi se consolidando em reuniões por Skype, telefonemas e mensagens inbox. Professora de teatro e atriz, Janaína Kremer estava em quarentena em sua casa quando decidiu desabafar sobre a angústia que sentia em relação às mulheres que não podiam parar de trabalhar em meio à pandemia. A postagem não passou batida e fez a diretora de fotografia Lívia Pasqual sugerir a criação de um grupo, formado por amigas. “Eu dei uma ideia, levantei uma questão, mas foram elas que ajudaram a tornar essa ideia um projeto sério”, observa Janaína,
As duas convocaram, então, a atriz Priscila Guerra, a cineasta Tatiana Nequette e a artista visual Caroline Faleiro. Distanciamento físico? Só um detalhe. Janaína mora em uma cidade no interior do Rio Grande do Sul, Montenegro, enquanto Priscila, Tatiana e Lívia moram em Porto Alegre e Caroline reside em São Paulo. Moderadoras, também voluntárias, foram adicionadas, para ajudar na enxurrada de apelos e acompanhar o atendimento aos pedidos, que vão do desespero à fome.
Priscila é uma das fundadoras do grupo – Foto: Acervo Pessoal |
“É uma demanda dinâmica, porque a pandemia também é dinâmica. Precisaremos rever constantemente nossas ações, para conseguir atender às necessidades de cada momento”, diz Priscila Guerra. Para ela, a iniciativa de criar o Boleto+1 preenche a lacuna deixada pelos poderes públicos, ausentes quando as pessoas estão ainda mais vulneráveis. “Diante da ineficiência do Estado, temos a obrigação de agir e responsabilidade perante a comunidade, especialmente em um momento de crise”.
A prioridade, segundo ela, é fazer com que a ajuda chegue efetivamente a quem mais necessita, especialmente àqueles que não sabem sequer como se expressar por escrito no grupo e, assim, acabam tendo menor visibilidade para seus pedidos. “Nós, artistas, lidamos com crises políticas no último ano. Mas tenho esperanças. Tenho esperanças de que essa pandemia provoque nas pessoas reflexões sobre como nos relacionamos com as nossas comunidades e com o nosso planeta”.
Vulnerabilidade feminina
Pensado como uma rede de suporte financeiro-afetiva, o Boleto+1 tem foco nas mulheres, de acordo com Lívia Cabral, por serem especialmente vulneráveis durante períodos como os de agora, embora não restrinja a participação dos homens, desde que não silenciem as mulheres. “São mães de filhos sem pai, trabalhadoras autônomas, faxineiras, ambulantes, trabalhadoras sexuais, cuidadoras… Nesse momento, devido à necessidade de distanciamento social, elas estão com sua renda comprometida e, muitas vezes, não têm a quem pedir ajuda”, explica.
A vulnerabilidade feminina, lembra Lívia, é acentuada pelo fato de elas ganharem menos que os homens em cerca de 30% e serem vítimas constantes de violência doméstica, cujos índices tendem a piorar durante a quarentena. “O grupo cresce exponencialmente e as demandas são novíssimas para todos. Essa semana, por exemplo, uma mulher em trabalho de parto nos procurou para saber se deveria, ou não, ir ao hospital. Isso nos levou a repensar nossas formas de ajuda”.
Até o momento, via Boleto+1, mais de 2,5 mil pessoas tentaram se conectar em busca de auxílio. Para facilitar a comunicação, “as boleteiras” criaram até uma espécie de tutorial de pedidos e ajuda. “Entre os que mais me tocam estão aqueles relacionados com mães preocupadas com a fome de seus filhos. Elas recebem as colaborações e enviam fotos de suas geladeiras cheias. Foram muitas histórias assim essa semana”.
Regras também foram criadas. “Recusamos pedidos de remédios ou de vaquinhas e nos concentramos em boletos e em ajuda em dinheiro para suprir necessidades básicas, comida na mesa”. A continuidade não é uma preocupação. Ser desnecessário seria sinal de mudança para melhor. “Espero que as pessoas desenvolvam o senso de coletividade e que alguns mitos neoliberais sejam enterrados de uma vez por todas”.
Ativismo feminino
Acostumada ao ativismo, Monique Prada se juntou às “boleteiras” como mediadora, convidada por Janaína Kremer. Ela credita a grande adesão ao grupo a um acúmulo de vulnerabilidades que é anterior à pandemia. “O país já vinha atravessando uma crise brutal, e as pessoas realmente se sentem desamparadas. No grupo, elas encontram acolhimento”. Colunista do Mídia Ninja e integrante do Grupo Assessor da Sociedade Civil da ONU, Monique é trabalhadora sexual e diz contar com o apoio de pessoas próximas para conseguir se manter durante a quarentena.
Ela também está atenta aos movimentos de apoio às trabalhadoras sexuais e vem atuando em um projeto direcionado a elas. “Até o final da semana, teremos mapeado, junto ao Observatório da Prostituição da UFRJ e as redes de defesa de direitos, as iniciativas para abrigar essas mulheres na quarentena”. Para Monique, a pandemia pode levar a humanidade a uma nova consciência. “O vírus tem nos mostrado que se não cuidarmos de todos, a vida no planeta corre riscos”.
Artista visual e uma das administradoras do grupo, Caroline Faleiros concorda com Monique Prada, mas acredita que a exaustão financeira e econômica será inevitável, e talvez seja o motor para a reinvenção da humanidade. “A verdade é que a pobreza e a desigualdade sempre estiveram aí. A pandemia é apenas mais um entrave na vida dessas mulheres”, diz. Ocupada com demandas e pedidos, ela considera bom ter essa rotina na quarentena, embora estimule um turbilhão de sentimentos. “A gente sente uma mistura de muitas sensações, desde gratidão a tristeza e desespero”.
Caroline integra o grupo de conexão de mulheres solidárias – foto: Acervo Pessoal |
Manter o foco na organização do grupo, de acordo com Tatiana Nequette, é o melhor modo de ficar firme, diante da realidade que se descortina a cada apelo por ajuda. Para ela, fazer as coisas funcionarem mostra o quanto a coletividade pode ser essencial. “Nossa única chance de sobrevivência em tempos de crise são as redes de solidariedade que estão se formando. Se conseguirmos atravessar essa pandemia, vai ser porque tivemos que ser menos egoístas, tivemos que nos dar as mãos, levar o outro mais em consideração e levar a natureza mais em consideração”.
Como funciona o boleto +1
Onde?
Entre no Facebook e procure o grupo Boleto +1 (Para participar do grupo é só acessar esse link )
Precisa de ajuda?
O grupo oferece ajuda com boletos. Você pode pedir a quitação de um boleto. Você também pode pedir alimentos, gás e outras coisas que não estejam necessariamente em forma de boleto.
Quer ajudar?
Você pode ajudar pagando um boleto no valor integral ou ajudando com outras doações
Quer pedir ajuda?
Faça seu post com o título já indicando o pedido (boleto ou item e o valor)
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