No front: médicos baianos relatam “medo” da guerra que está por vir, mas prometem abnegação
Karine está na linha de frente do atendimento no Instituto Couto Maia (Foto: Divulgação) |
Se, de fato, é uma guerra o que estamos vivendo, são eles que formam a nossa linha de frente. Médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, técnicos de enfermagem e todo o corpo de apoio a esses profissionais (limpeza, maqueiros, motoristas) vão arriscar as suas vidas e de suas famílias para minimizar ao máximo os impactos da pandemia de coronavírus no nosso estado. Como eles encaram essa situação sem precedentes? O CORREIO ouviu baianos que estão no front dessa batalha.
Os sentimentos em comum são medo, ansiedade e muita, muita disposição. Sim, o medo é importante para que cada procedimento, cada avaliação, cada passo seja dado com muito critério, até porque uma guerra é feita de baixas e ninguém quer entrar para o grupo de infectados. A ansiedade existe porque o inimigo é mais ou menos desconhecido e o pior ainda é aguardado. E a disposição parece algo intrínseco, algo da natureza de quem nasceu para salvar vidas.
“É um grande desafio! Estamos trabalhando com uma situação que nós não conhecemos muito. Isso gera apreensão, medo. Aqui a gente está preparado, treinado e sabemos que essa é a nossa missão”, afirma Karine de Almeida Araújo Ramos, médica infectologista coordenadora do pronto atendimento adulto do Instituto Couto Maia, principal referência de atendimento aos casos de Covid-19 na Bahia. Karine sabe que é apenas um dos abnegados anônimos que estão no front.
“É um trabalho constante, árduo e de toda equipe. Do segurança ao recepcionista, do auxiliar da higienização à enfermagem e o médico. O trabalho de todo mundo é importante e a má execução de um expõe todos os outros”, afirma a médica, prevendo algumas baixas, ainda que não sejam pelo coronavírus. “Precisamos cuidar uns dos outros enquanto equipe. Tem gente que não suporta a pressão e a gente tem que apoiar”.
A agonia da espera por uma guerra que aos poucos vai se desenhando cresce a cada dia. Médico atuante na rede privada e na emergência do Hospital Geral do Estado (HGE), Nelson Moscoso sabe que não é super-herói, mas está nas mãos dos profissionais de saúde fazer a diferença. “A maioria está disposta a enfrentar essa situação que nunca vivenciou! Sabemos que estamos na linha de frente da batalha. Podemos fazer a diferença na evolução de uma pessoa infectada. De uma mãe, de um pai, de um avô, de uma avó! Porém, não somos super-heróis! Todos estamos receosos com o que vamos nos deparar”, afirma.
Nelson atua na rede particular e HGE (Foto: Divulgação) |
Até porque, diz ele, o prognóstico não é dos melhores. “Estamos esperando pelo pior. Todos muito assustados com o que já estão vendo acontecer em outros países”, admite o médico. Um dos grandes desafios, diz ele, é ter que tomar decisões rápidas.
“Temos medo de chegar ao ponto de escolher quem vai ou não para a UTI por falta de vaga”, diz ele, ciente dos riscos da doença. “Já falta vaga na UTI normalmente. E essa é uma doença que os respiradores salvam vidas”, afirma Dr. Nelson, que é cirurgião, mas sabe que todos, seja qual for a especialidade, serão em algum momento chamados ao front.
“Ainda que novas UTIs surjam, como vão surgir, não temos médicos intensivistas para tantos pacientes, nem médicos emergencistas suficientes para realizarem o primeiro atendimento. Então, todos vão ter que ajudar”, acredita .
Intensivista, Paulo Bittencourt busca experiências da China e Europa para as nossas UTIs (Foto: Divulgação) |
Intensivista do Hospital Português, Paulo Lisboa Bittencourt diz que os médicos precisam se cuidar, especialmente em relação à segurança e saúde mental.
“Uma epidemia como esta, associada a confinamento e isolamento social, pode revelar o melhor ou o pior de cada um de nós. A maior parte das UTIs brasileiras estão compartilhando experiências e ensinamentos provenientes das UTIs da Europa e China. Estamos tentando trazer o melhor que podermos”, garante o médico.
Repatriação
E quando alguém deixa o front de uma guerra que está no auge para entrar em outra batalha que está só começando? A infectologista baiana Renata Ávila de Naves Mendonça saiu do Hospital St Raffaelle, em Milão, na Itália, para trabalhar com o atendimento aos pacientes da Covid-19 no Hospital São Rafael, em Salvador. Segundo informou a o site da Revista Época, ela foi convocada no sábado passado (21) e embarcou no dia seguinte. Com a sua repatriação, trouxe o know-how de quem atuou no país mais atingido pela Covid-19 no mundo.
Infectologista baiana Renata Mendonça veio de Milão, na Itália, trazer sua experiência (Foto: Divulgação) |
Durante sua permanência na Itália, Renata contribuiu com informações para a equipe do próprio Couto Maia.
“Difícil largar companheiros no meio de uma guerra. Deixei presentes que tinha comprado antes da situação chegar ao ponto que chegou. Deixei no subsolo para meus colegas. Não pude abraçá-los. Chorei muito. Mas estarei na linha de frente na minha terra”, disse Renata à Época, ainda da Itália.
Agora, como teve contato com diversos pacientes, vai passar por uma quarentena de 14 dias em casa antes de ir a campo. Tentamos conversar com Renata, mas ela informou que, a partir do momento que chegou em Salvador, está completamente focada no trabalho.
A médica hepatologista Aline Chagas, 40 anos, não chegou a fazer o caminho inverso de Renata, mas combaterá em outro território. Baiana, trabalha em um grande hospital de São Paulo. “Todos nós da área da saúde estamos nos mobilizando e ajudando no que for possível na guerra contra o coronavírus. É uma situação angustiante para todos, mas acima de tudo é nossa função como médicos prestar assistência para nossos pacientes e para a população”, diz Aline, que está de quarentena porque passou a apresentar sintomas de gripe.
Aline Chagas luta em outra frente em um hospital de São Paulo (Foto: Divulgação) |
“Quem tava de férias teve que cancelar as férias, todos estão convocados. O pico da doença ainda deve acontecer. Temos que ter calma, tentar ao máximo se proteger do vírus para que a gente não deixe lacunas nas equipes”, disse Aline, preocupada com os outros pacientes dela. “Trabalho com pacientes oncológicos. São um grupo com maior risco de apresentar um quadro grave caso venham a adquirir o COVID. E são pacientes que também precisam receber tratamento para a doença oncológica”.
Soldados
Como já foi dito pelos próprios, essa é uma guerra que está longe de se resumir aos médicos. Como bons comandantes, sabem que é impossível combater o vírus sem seus soldados e outros subordinados de grande patente. Muitos deles essenciais, especialmente no caso de uma doença que leva à UTI. Uma fisioterapeuta intensivista que trabalha em um hospital particular e preferiu não ser identificada diz estar preocupada com os intermináveis plantões que virão pela frente, mas está disposta a contribuir como nunca.
“Até porque um dos principais sintomas da Covid-19 é justamente o desconforto respiratório, a dispnéia (falta de ar), consequência do comprometimento que o vírus causa no pulmão. Uma de suas complicações é a síndrome respiratória aguda, onde o paciente, na maioria dos casos, necessita de uma UTI. Ele pode evoluir com insuficiência respiratória necessitando de aportes de oxigênio ou ventilador mecânico para respirar. Aí entra o fisioterapeuta”, ensina.
“Estamos com medo, preocupados, mas cheios de disposição. A gente sabe que quem tá na linha de frente faz a diferença nessa hora. Estamos juntos com os médicos, enfermeiros e técnicos. Um não existe sem o outro. Todos estaremos muito expostos. A gente tá com medo porque estamos muito expostos”, observa a fisioterapeuta.
Experiente, Maria das Graças se prepara para um grande desafio (Foto: Divulgação) |
De fato. O vírus assusta a todos. Até Maria das Graças Silva Santos, 53 anos, 34 deles dedicados à função de técnica de enfermagem. Já passou por diversos tipos de crises, como o atendimento às vítimas dos fogos de artifício de Santo Antônio de Jesus.
“Mas nunca me vi em uma situação tão complicada. Essa pandemia nos surpreendeu de forma ímpar. Mas os doentes precisam da gente, da nossa calma e da nossa serenidade”, disse Graça, que atualmente trabalha no Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hupes), que também vai atender doentes com Covid-19.
Preocupação com segurança, EPIs, baixas nas equipes e transmissão para as famílias
O fato de estar em contato com os infectados pelo coronavírus traz diversos medos aos profissionais da saúde que estão na linha de frente na Bahia. O receio das baixas e de passar o vírus para os familiares vem principalmente da possibilidade de encarar o trabalho em condições extremas e sem os devidos equipamentos de segurança. Hoje, os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) recomendados no Brasil, as armas de guerra, são a capa impermeável, o uso de duas luvas, a máscara N-95, o gorro e os óculos de proteção.
“Eu acho que a gente poderia estar muito mais protegido. Isso é geral. Acho que o país inteiro poderia ter se preparado melhor nesse sentido. Nossos EPIs são básicos, longe de ser aquelas roupas de astronauta que a gente vê na China e Itália. Os equipamentos deles são infinitamente mais adequados”, afirma uma fisioterapeuta intensivista que preferiu não ser identificada.
“Muitos profissionais de saúde serão infectados porque é um vírus que tem um contágio muito fácil, além do problemas com equipamentos de proteção individual que todos vão enfrentar. Muitos médicos, enfermeiros e fisioterapeutas devem se afastar durante essa jornada. Não vai ter quem substitua. Certamente vai ter médico trabalhando 48h ou 72h seguidas”, prevê Nelson Moscoso, que trabalha na emergência do HGE e em hospital da rede particular. Mais do que receio de pegar a doença, os profissionais não querem transmiti-la. “Eu não tenho medo de ter Covid. O meu receio é levar para casa, para meus filhos e esposo. Por isso sigo à risca todos os nossos protocolos, diz Karine de Almeida Araújo Ramos”, médica infectologista Couto Maia
O médico intensivista Paulo Lisboa Bittencourt diz que as UTIs estão acostumadas ao enfrentamento de diversos tipos de microorganismos, mas nunca nenhum deles preocupou tanto os profissionais de saúde quanto o SARS-CoV2. “A mortalidade global da COVID-19 é apenas 3%-8%, bem aquém daquela observada na UTI em pessoas com sepse e choque séptico. O que nos assusta é a velocidade e alta taxa de transmissibilidade do vírus, capaz de levar a um colapso no sistema com impacto na assistência por falta de leitos hospitalares e escassez de recursos como EPIs e respiradores”, afirma o médico.
“Ela pode levar a aumento do risco de contaminação dos profissionais de saúde por sobrecarga de trabalho e uso inadequado de EPIs como ocorreu em vários outros países”, observa o intensivista. O fato de muitos infectados serem assintomáticos cria uma preocupação adicional pelo potencial de podermos transmitir a doença para nossos familiares e amigos de forma não intencional”.