Crise do coronavírus pode adiar eleições municipais? Veja o que está em discussão

SÃO PAULO – As incertezas provocadas pelo avanço do novo coronavírus e a extensão ainda desconhecida da crise gerada pela pandemia da doença têm levado atores políticos à discussão sobre o possível adiamento das eleições municipais marcadas para outubro de 2020.

O tema já vinha rendendo conversas nos corredores do Congresso Nacional dias antes de as duas casas legislativas determinarem trabalho remoto com sessões virtuais, mas ganhou força após o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, defender a mudança em reunião online com prefeitos no último domingo (22). Ele argumentou que a medida evitaria que ações políticas pudessem prejudicar iniciativas para o combate à doença.

Estimativas da pasta indicam um aumento de casos no Brasil entre abril e junho. Uma melhora na situação pode ficar apenas para agosto ou setembro, o que poderia comprometer etapas preliminares do processo eleitoral – como a janela para filiações partidárias, a realização obrigatória das convenções partidárias e o período de campanha.

Diante dos impactos previstos, grupos de parlamentares têm discutido alternativas. Com o impedimento de aglomerações, muitos acreditam que campanhas podem ser inviabilizadas, assim como a realização das convenções para definição de candidaturas e alianças, como determina a legislação – o que tem preocupado alguns dirigentes e líderes partidários.

Há diversas teses no parlamento. Enquanto uns defendem um adiamento de até seis meses no pleito, outros querem aproveitar a ocasião para movimentações mais drásticas. É o caso do deputado Aécio Neves (PSDB-MG), autor de uma proposta para unificar eleições gerais e municipais, empurrando a disputa deste ano para 2022. Mas qualquer mudança no calendário eleitoral está longe de ser consenso entre os legisladores, sobretudo na cúpula dos Poderes.

Para o líder do governo no Congresso Nacional, o senador Eduardo Gomes (MDB-TO), o adiamento das eleições passa a ser um cenário provável com o avanço do novo coronavírus pelo país e pode representar uma oportunidade para os parlamentares avançarem com uma reforma política mais profunda.

“Acho muito difícil que isso [eleições municipais] funcione. São 57 mil vereadores, multiplique no mínimo por dez candidatos por vaga em uma situação sanitária terrível, uma crise terrível para que esse processo seja equilibrado. Temos uma chance de adiamento ou de prorrogação com coincidência de eleições que pode abrigar uma reforma política mais contundente, tão desejada no país”, disse em live organizada pela XP Investimentos.

“É uma coisa que vamos viver em um momento posterior, mas é o que eu prevejo, a eleição está prejudicada neste ano”, pontuou. Gomes argumenta, inclusive, que, dependendo do entendimento dos congressistas, é possível usar os recursos do fundo eleitoral e os que seriam destinados à Justiça Eleitoral na organização da disputa deste ano para o combate aos efeitos da Covid-19.

“O Congresso realmente pode se dedicar a todos os grandes temas de legislação. De repente, o custo de não ter eleição pode trazer o benefício de ter um Congresso mais antenado com o processo de recuperação”, argumentou. A posição é tentadora para prefeitos preocupados com a realização de uma disputa no calor da crise do novo coronavírus, que deve ter fortes impactos sobre sua popularidade.

Já na avaliação do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a discussão sobre um possível adiamento das eleições municipais é “completamente equivocada”. Ele salientou que o momento é para debater questões de saúde pública, proteção de empregos e da população mais vulnerável.

Posição similar foi apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Para ele, ainda é cedo para se falar em mudança na data do pleito. “Não entro nessa seara. Ele (o ministro Luiz Henrique Mandetta) defendeu, não sei se foi feita essa pergunta pra ele como você fez para mim, eu podia falar ‘sim’ ou ‘não’, mas tá muito longe ainda”, disse na última segunda-feira (23).

No Judiciário, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso, que assumirá a presidência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) em maio, diz que a decisão cabe ao parlamento, mas que, caso ocorra um adiamento, que ele se restrinja ao “prazo necessário e inevitável para que as eleições sejam realizadas com segurança para a população”. Ele lembra, contudo, que “a realização de eleições periódicas é um rito vital para a democracia”.

Em nota à imprensa, a ministra Rosa Weber, atual presidente da corte eleitoral, disse também ver o debate da mudança no calendário como precoce, mas reconheceu que “a evolução diária do quadro fático está a exigir permanente reavaliação das providências”.

Sem radicalismo

Mudanças em regras eleitorais são sempre tratadas com cuidado por especialistas no assunto, principalmente quando estão em jogo questões que impactam a periodicidade dos pleitos, a duração do mandato de políticos no exercício do cargo e quando as decisões ocorrem a menos de um ano das eleições. Todas essas são questões constitucionais e consideradas pilares da democracia.

Diante da excepcionalidade provocada pela crise do novo coronavírus, no entanto, advogados eleitorais ouvidos pelo InfoMoney acreditam ser possível discutir um adiamento do pleito deste ano, desde que com o mínimo de modificações possível e que fique clara a restrição a este caso específico. As alterações teriam que ser costuradas via aprovação de PEC (Proposta de Emenda à Constituição) pelo Congresso Nacional.

“O assunto é sério demais e tem que ser tratado com o máximo de cuidado. Estamos passando por um momento de grande incerteza. Ainda não se justifica tomar uma decisão hoje, quando ainda não se sabe a extensão dos efeitos do coronavírus. O ideal é ter prudência até que haja maior clareza”, pontua Cristiano Vilela, sócio do escritório Vilela, Silva Gomes & Miranda Advogados e membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-SP.

“Em não sendo possível a manutenção do calendário eleitoral, o elemento fundamental é que a mudança seja a menor possível. Se for necessário postergar a data por um, dois ou três meses, em um caso de saúde pública, se justifica. Agora, no limite mínimo possível para adequação do calendário a esse quadro de saúde pública”, complementa.

Na avaliação de Vilela, o uso da atual conjuntura de crise provocada pelo novo coronavírus para se aprovar uma unificação de eleições nacionais e municipais fere a cláusula democrática da Constituição Federal.

“Jogar uma eleição para janeiro, fevereiro, março, no máximo, é razoável. Agora, dois anos de mandato biônico foge do razoável e dá margem para, em outros contextos, novas medidas flexibilizarem o princípio democrático. Não se pode flexibilizar a democracia”, defende.

O também advogado eleitoral Fernando Neisser, sócio do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados e fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), acredita que o adiamento das eleições municipais deve ocorrer em caso de necessidade. Mesmo assim, deve-se trabalhar para que as modificações sejam pequenas e que o texto não abra precedentes para ações futuras.

Neisser, contudo, acredita que ainda não seria o momento para ações no sentido de alterar o calendário eleitoral deste ano. Ele justifica que o processo não sofreria grandes impactos se a decisão fosse postergada em um ou dois meses, quando poderia haver maior clareza da situação, uma vez que um possível adiamento do primeiro e segundo turnos arrastaria todos os demais prazos do processo eleitoral para frente na mesma proporção.

Para ele, a pressão pela unificação de eleições municipais e nacionais vem de um movimento político mais antigo, que agora vê uma nova oportunidade para ter sua posição atendida. A demanda, diz o especialista, ganhou força desde as mudanças nas regras para financiamento de campanhas, com o fim da possibilidade de empresas doarem para candidatos.

Além disso, há o interesse de prefeitos em diminuir a concorrência com alguns deputados federais, que muitas vezes decidem participar da disputa e contam com a vantagem de bônus colhidos a partir de resultados de suas emendas parlamentares.

“Esse movimento de unificação está latente na política brasileira”, diz o especialista. “O momento tornou-se propício para que, de uma forma oportunista, esses movimentos ganhassem força novamente”.

“Mas uma coisa é dizer que, pelo surto, será necessário jogar três meses [para frente] a eleição. Outra é decidir unificar. É uma mudança estrutural que não faz sentido [para o atual debate]“, avalia.

Já Alberto Rollo, professor de Direito Eleitoral e Constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie, acredita que já é momento para se discutir o adiamento das eleições municipais. Para ele, os efeitos do avanço do novo coronavírus já afetam o calendário, com problemas no sistema dos TREs (Tribunais Regionais Eleitorais) impedindo movimentações da janela de filiação partidária, que se encerra em 4 de abril.

“O Congresso vai ter que responder ao seguinte: é melhor fazer uma eleição meia boca em outubro, comprometida com a doença e a vontade do eleitor, que está preocupado com outras coisas, ou atrasar? – o que vai dar uma balançada pequena no barco, mas colocamos uma camisa de força pequena nessa alteração, aceitando um processo eleitoral um pouco mais equilibrado, independente e organizado. Quanto antes [decidir], melhor”, argumenta.

Dada a sensibilidade provocada por uma eventual mudança na data das eleições e até mesmo na duração dos mandatos dos atuais encarregados e dos sucessores escolhidos, Rollo chama atenção para a necessidade de o movimento ser bem construído pelos congressistas, estimando uma margem confortável para a superação da pandemia, de modo a não serem necessárias decisões de adiamento subsequentes.

Assim como seus pares, o advogado eleitoral é contra alterações mais radicais, como a de unificar os processos eleitorais gerais e municipais em 2022. “Sempre me preocupa o uso de uma ‘desculpa’ para a obtenção de determinado fim político. Essa unificação foi aventada quando discutimos a reforma política e derrotada. Esse grupo menor está usando a pandemia como desculpa [para novamente tentar modificar a regra]“, critica.

Para Ricardo Ribeiro, analista político da MCM Consultores, ainda não é o momento de se discutir o adiamento das eleições e causa estranheza a fala do ministro Mandetta sobre o assunto. Ele acredita que o ideal seria esperar um pouco mais até que se tenha maior clareza dos impactos da doença e de quanto tempo medidas mais drásticas contra ela precisariam ser mantidas.

Na avaliação do especialista, a mudança na data das eleições pela excepcionalidade da pandemia da Covid-19 não deve trazer riscos ao processo democrático brasileiro. “Não vejo nenhum risco relevante. Se houver adiamento, não vejo muito longo. Conceder seis meses a mais em mandatos para prefeitos não vai mudar muito as coisas”, diz.

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