‘Me sinto desolada’: moradores lamentam falta do cortejo do 2 de Julho

Decoração do caboclo foi feita para cerimônia simbólica

Não é preciso previsão do tempo para saber que o sol do dia Dois de Julho sempre brilha mais que no primeiro. Assim era desde 1823. Exatos 197 anos se passaram e a Bahia viu o dia amanhecer diferente do que acontece em condições normais de saúde pública e aglomeração. Especialmente nas ruas por onde passam o cortejo histórico, e onde vivem muitos dos chamados “órfãos do Dois de Julho”, as lamentações geraram até lágrimas: “me sinto desolada”, resumiu a comerciante Isa Oliveira, 53 anos.  

Proprietária de um ateliê localizado na Rua Direita do Santo Antônio, Isa tinha o costume de reunir em sua casa tantos amigos que ela nem conseguia contar. Na sua varanda intimista, vendia feijoada e chegava a faturar cerca de R$ 4 mil, dinheiro que até pode fazer falta, mas nada comparado ao calor humano que ela fez questão de destacar. “Minha casa era o point certo onde amigos paravam e vinham confraternizar. É difícil acordar sem esse abraço”, disse. 

Isa Oliveira se emocionou ao falar sobre a falta do Dois de Julho (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Sua residência também é ao lado de outra já famosa por ter vencido quatro vezes o concurso de decoração de fachadas do trajeto. A proprietária e organizadora, Maria São Pedro Santana, mora há 41 anos no local e nos últimos 39 manteve a tradição viva. Tudo embalado pelo seu aniversário, que é justamente no Dois de Julho.  

“Eu comecei a trabalhar em novembro do ano passado com a decoração. Ia botar uma coisa maravilhosa, tudo no bordado. Tá tudo aqui pronto, dentro da caixa. Mas começou essa pandemia e eu vou fazer o quê? Vamos ter que deixar pro próximo ano mesmo”, lamentou.  

A verdade é que não era só de decoração que Dona Maria vivia o Dois de Julho. “No dia primeiro, eu começava a cozinhar assim que anoitecia e só parava às 6h da manhã. Eram três panelas gigantes de feijoada. Nunca dormi na véspera do meu aniversário”, lembra. O local logo começou a receber tantos amigos e familiares e se tornou um ponto de referência do desfile. Não era estanho políticos e até desconhecidos irem até Dona Maria para desejar um feliz aniversário.  

“Esse ano, umas amigas até quiseram continuar a tradição. Disseram que era para eu preparar a feijoada que elas iam vir de máscara. Eu que não quis! Tenho amor a minha vida. Quero repetir essa tradição por muitos anos. Você será bem-vindo aqui em 2021”, disse ao repórter, antes de cair numa gargalhada contagiante. De riso fácil e com uma sabedoria ancestral, ela não deixa se abalar pelo momento vivido. “A vida tem dessas coisas. Estou há dois meses sem sair de casa, mas estou bem. Estou feliz”, completou. 

Até as netas de Dona Maria eram fantasiadas de personagens históricos. Essa imagem é do cortejo de 2018 (Foto: Thais Borges/Arquivo CORREIO) 

“Só íamos dormir às 22h do dia Dois” 
Órfãos do Dois de Julho, Dona Maria e tantos outros recordaram como era a movimentação na região, na véspera do dia festivo. “Logo pela manhã, o pessoal andava pra cima e pra baixo, para comprar as coisas para o almoço e decoração. Mas era mesmo pela noite que começava o agito, quando o trânsito era fechado. Só íamos dormir às 22h do dia Dois”, recorda Dani Cunha, também dona de um ateliê do Santo Antônio.  

Esse ano, ela e amiga Camila Alves vão manter a tradição da fachada. “Vamos passar uma mensagem de protesto. Ano passado foi contra a morte de Marielle Franco e Moa do Katendê. Esse ano, vamos protestar contra o governo federal”, disseram. Quando encontraram o CORREIO, as amigas estavam indo comprar os adereços para a decoração.    

As amigas Dani e Camila não vão deixar o Dois de Julho passar em branco (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Por causa de uma obra feita no Santo Antônio, as ruas da região estavam movimentadas, mas de agentes públicos que realizavam o serviço. Eles usavam máscara e mantinham o distanciamento. No Largo da Lapinha, onde começa o cortejo, também tinham funcionários da prefeitura realizando reparos nas estruturas.  

Dentro do galpão chamado Pavilhão Dois de Julho, servidores também realizaram a limpeza. O artista plástico João Marcelo Ribeiro, 57 anos, era responsável pela ornamentação das imagens do caboclo e da cabocla, que ficam no local. “Nos anos anteriores, a movimentação por aqui já seria bem maior. Como estamos nessa pandemia, tudo foi reduzido ao máximo”, disse.  

Há cerca de 10 anos João é responsável por esse serviço. “Dessa vez, eu fiquei em dúvida se ia realmente acontecer algo. Quando se confirmou, foi um pouco em cima da hora. A sorte que quando acaba um cortejo eu já começo a pensar no outro e começo a reservar um material”, disse.  

Pintura do Pavilhão Dois de Julho foi retocada (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Solenidade 
O Dia da Independência do Brasil na Bahia terá atos comemorativos simbólicos no Largo da Lapinha. Para garantir o isolamento social, o acesso será liberado apenas às autoridades civis e militares, além da imprensa identificada. A partir das 8h, haverá hasteamento das bandeiras nacional, do estado e da capital baiana, seguido pela deposição de flores aos Heróis da Independência no monumento do General Labatut. 

A solenidade contará com as presenças do prefeito ACM Neto e do governador Rui Costa, dos presidentes da Assembleia Legislativa da Bahia, da Câmara de Vereadores e do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), Nelson Leal, Geraldo Júnior e Eduardo Morais de Castro, respectivamente, entre outras autoridades e imprensa. 

O local onde ocorrerá as celebrações será interditado com gradil, com intuito de evitar aglomerações. Também será montado um toldo onde as autoridades darão uma coletiva aos jornalistas em área reservada. Não haverá o tradicional cortejo cívico e nem a apresentação de grupos folclóricos ou culturais. 

O artista plástico João Marcelo Ribeiro passou a manhã do dia primeiro decorando as imagens do caboclo e da cabocla (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Esse ano, a decoração escolhida por João tem referências religiosas. Os tons amarelos são uma referência à Oxum. Já Omolu, patrono da medicina e da cura, vem representado através das plantas utilizadas. Uma pomba, símbolo da paz, também estará na decoração. “Acho que o Dois de Julho representa a fé do povo e isso é visível nas oferendas que as pessoas fazem ao caboclo”, disse.  

Criadas na Lapinha, as irmãs Selma e Auxiliadora Passos admiram a festa por “a mistura de religião, civismo e tradição”, disseram. Assim como os outros nove irmãos, elas não moram mais no bairro, mas mantém uma casa de família onde se reuniam no Dois de Julho. “É muito triste que esse ano não vamos fazer nada”, disse Selma.  

Vizinha do Pavilhão Dois de Julho, Cristina Leal, 57 anos, também lamentou a não realização do cortejo. “Admito que tenho saudades da festa como era antigamente, menos política e mais comemoração. No entanto, vai fazer falta receber familiares e amigos na minha casa”, disse.  

As irmãs Selma e Auxiliadora Passos também são órfãs do Dois de Julho (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Sem precedentes 
Desde quando começou a tradição, não há registros de que o desfile do Dois de Julho não tenha acontecido. O cortejo relembra o dia que os baianos expulsaram definitivamente as tropas portuguesas do estado. Na época, em 1823, os vitoriosos fizeram justamente o percurso que todo ano era feito pelo povo.  

“No momento inicial, a festa tem uma origem militar, mas ganha uma dimensão popular com o passar do tempo. À toa que personagens que não necessariamente fizeram parte do movimento de independência são inseridos no desfile. Hoje, vemos verdadeiros blocos de carnavais”, explicou o historiador Rafael Dantas.  

Ele explica ainda que a festa se tornou uma forma de mostrar e valorizar as personalidades baianas, históricas ou não. E se isso tem importância para os baianos, imagine para aqueles que moram nas ruas onde acontece o desfile. “Sem dúvida, a festa liga os moradores ao evento histórico, o que torna o Dois de Julho vivo. Ele só existe pela ação popular e o protagonismo das pessoas”, disse.   

Se você quer aprender mais sobre esse assunto, não perca a live que o historiador Rafael  Dantas vai participar no Instagram do Jornal Correio (@correio24horas), às 17h dessa quinta-feira. “Na live, vamos contextualizar a cidade e entender como ela era antes do cortejo e o que ela se tornou após o Dois de Julho”, explicou Rafael.   

As lives serão apresentadas pela subeditora do jornal e graduanda em História, Clarissa Pacheco. Ainda nas redes sociais, o CORREIO está publicando ao longo dessa semana um amplo conteúdo multimídia sobre o Dois de Julho, com vídeos, ilustrações, artigos e um podcast especial sobre a data. Não perca! 

* Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro.