Por uma vida menos ordinária

Nesses tempos de confinamento, sempre que sobra algum tempo, ele é gasto com a leitura. Por esses dias, engatei o raríssimo exemplar de “Espelho das horas”, de Carlos Anísio Melhor, empréstimo precioso do poeta Adelmo Oliveira, que simplesmente me presentou com o livro, quando fui devolvê-lo. Carlos Anísio é um dos meus poetas do coração. Dele, possuía apenas o igualmente raro “Canto Agônico”.
Meu exemplar de “Canto Agônico” bem poderia estar autografado, mas por timidez absoluta não pedi ao autor, quando o conheci pessoalmente nos corredores do Setor de Cordel da Fundação Cultural do Estado. Na verdade, nem sei como consegui reunir coragem suficiente para ir até ele naquela tarde quente de verão de 1991. Na época, a Biblioteca Pública dos Barris era meu lugar predileto.
Nos espaços culturais anexos àquela biblioteca, a primeira da América Latina, criada em 1811, no governo do Conde dos Arcos, fiz um curso livre de teatro, vivi uma paixão intensa e desastrada, assisti ciclos e mais ciclos de filmes europeus, e até lancei um livro de poemas. E, mais que tudo, conheci Carlos Anísio Melhor de perto. É ostentação, eu sei, e economizo na descrição de nosso primeiro encontro.
Eu sonhava em escrever, eu já escrevia uns textos. Eu sentia muito medo. Eu havia comprado o livro de Carlos Anísio sem a menor ideia de quem era. Eu vivia enfiada nos sebos da cidade em busca de títulos, porque ali estava o universo, o horizonte possível.
E, de repente, passeando entre as estantes, ao alcance de um gesto, estava o poeta de que tanto gostava, tão perto e inalcançável.
Nunca esqueci a boa acolhida que ele deu aos meus primeiros textos, e o bilhete que escreveu de próprio punho, no qual citava Fernando Pessoa e me recomendava a uma poeta, amiga sua, cujo nome não recordo. Ela saberia me orientar, dizia ele, no preparo de algum livro que, certamente, viria. Não, eu nunca entreguei aquele bilhete à possível preceptora. A timidez absoluta e seus estragos.
Também nunca levei o exemplar de “Canto Agônico” para que o poeta autografasse. Meses depois, soube que estava internado em um hospital. Cheguei a vê-lo e a conversar por alguns minutos com Maria Cesário Alvim, uma das organizadoras de “Espelho das horas”, tão generosamente doado por Adelmo. Soube da morte dele, dias depois daquela visita, pelos jornais. O poeta voltara a ser inalcançável.