Quais os possíveis caminhos dos dois inquéritos que rondam o governo?

Jair Bolsonaro

SÃO PAULO – Os avanços e repercussões do chamado inquérito das fake news, em tramitação no Supremo Tribunal Federal, voltaram a atrair atenções do mundo político e dividiram holofotes antes concentrados nas investigações que apuram uma suposta interferência do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sobre a Polícia Federal.

Uma semana após a divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, citada pelo ex-ministro Sérgio Moro como prova no inquérito da PF, a operação de buscas e apreensões em endereços de empresários e blogueiros bolsonaristas trouxe novas preocupações ao presidente e elevou o grau de tensão institucional entre o Palácio do Planalto e o STF.

Bolsonaro atacou a investigação e esbravejou contra a Corte, deixando no ar um tom de insubordinação a decisões judiciais. “Não teremos outro dia como ontem. Chega”, afirmou em frente ao Palácio da Alvorada na última quinta-feira (28). O presidente disse ainda que conta com as “armas da democracia” e que “ordens absurdas não se cumprem”.

O tom foi intensificado pelo filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que citou um contexto de ruptura institucional e disse que será natural se a população recorrer às Forças Armadas se estiver insatisfeita com a atuação do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.

“O poder moderador para reestabelecer a harmonia entre os Poderes não é o STF, são as Forças Armadas”, declarou em entrevista à TV Bandeirantes. “Eles vêm, põem um pano quente, zeram o jogo e, depois, volta o jogo democrático”. Um dia antes, o parlamentar havia dito que não é mais uma questão de saber se haverá ruptura institucional, mas quando ela ocorrerá.

Os dois inquéritos devem seguir repercutindo no mundo político, a despeito de esforços em encerrar as investigações, e podem gerar novos choques entre os Poderes. Se antes o eixo de tensão do Poder Executivo era com o Congresso Nacional, agora a corda estica com o Judiciário.

“Nos primeiros meses de governo, víamos uma tensão muito voltada ao Legislativo, e o presidente do STF tentava se colocar como um moderador, para ajustar as arestas. Com o advento da pandemia e as posições adotadas pelo presidente e por parte do governo federal, as diferenças abissais de visão de mundo entre STF e Executivo começaram a se acirrar. O Supremo não aceitou chancelar algumas ideias do presidente e essas tensões foram aumentando”, observa Débora Santos, analista política da XP Investimentos no podcast Frequência Polícia (ouça a íntegra pelo player acima).

A cada derrota do governo no STF, cresciam as postagens de grupos apoiadores do presidente contra o Poder Judiciário. Manifestações foram organizadas em plena pandemia para pedir intervenção militar e o fechamento do parlamento e da Corte.

Ao mesmo tempo, o polêmico inquérito aberto em 2019 com o objetivo de investigar “notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações que atingem a honorabilidade e a segurança do STF e de seus membros” avançou e hoje ameaça um dos pilares do governo: a militância nas redes.

Outra sombra cresceu com a saída do um dia “superministro” Sérgio Moro da pasta da Justiça e Segurança Pública. O ex-juiz da Lava-Jato deixou o governo acusando o presidente Jair Bolsonaro de tentar interferir politicamente na Polícia Federal, forçando a substituição de nomes na direção-geral e em superintendências sem apresentar justificativas e cobrando acesso a conteúdo de inteligência produzido pela corporação.

As duas investigações devem seguir influenciando as movimentações na política nas próximas semanas. Entenda o que se pode esperar de cada uma:

1) Fake News

Em março do ano passado, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, anunciou a abertura de um inquérito para apurar fake news, ameaças e ofensas caluniosas, difamatórias e injuriosas a ministros da corte e seus familiares. E incumbiu o ministro Alexandre de Moraes de tocar o caso.

O procedimento foi aberto em meio a derrotas impostas pela Corte à Operação Lava-Jato e ataques entre magistrados e membros da força-tarefa em Curitiba – além de uma esperada reação inflamada de parte da opinião pública. E ainda um contexto de dificuldades do tribunal em mudar o entendimento vigente sobre a prisão após condenação em segunda instância.

O caráter heterodoxo da iniciativa gerou reações no Congresso Nacional e entre membros do Ministério Público Federal. Na prática, o STF criava um inquérito para ele mesmo investigar, com delimitações que acabaram questionadas, sobre a amplitude da ação, e conduzido em sigilo. Os supostos crimes investigados tinham o tribunal como alvo e ele mesmo seria o responsável por julgar.

De confissões do ex-procurador-geral Rodrigo Janot, que declarou ter tido intenção de assassinar o ministro Gilmar Mendes, até a interferência sobre uma reportagem publicada pelo site O Antagonista que ligava Toffoli à empreiteira Odebrecht, o inquérito já percorreu diversos caminhos.

Nos últimos dias, porém, com a operação contra ativistas, empresários, blogueiros e políticos bolsonaristas, o inquérito fechou o certo contra o que ficou conhecido como “gabinete do ódio”, bunker digital usado por aliados para atacar adversários políticos do presidente.

Em despacho que determinou as buscas e apreensões, Alexandre de Moraes fala em suspeita de “associação criminosa” e mirou um grupo suspeito de operar uma rede de divulgação de notícias falsas contra autoridades e possíveis financiadores.

“As provas colhidas e os laudos periciais apresentados nesses autos apontam para a real possibilidade de existência de uma associação criminosa, denominada nos depoimentos dos parlamentares como ‘Gabinete do Ódio’”, afirmou o magistrado.

De acordo com o jornal Folha de S.Paulo, Bolsonaro já teria relatado a aliados um temor de que Carlos Bolsonaro torne-se o próximo alvo de uma operação. Um mês atrás, o veículo informou que os investigadores identificaram o filho do presidente como um dos articuladores do esquema de propagação de notícias falsas e ataque à reputação de adversários políticos.

Além das fortes críticas feitas por Bolsonaro, a ação ensejou uma nova ofensiva da PGR pelo arquivamento do inquérito. Desta vez, foi Augusto Aras que direcionou pedido ao ministro Edson Fachin, do STF, que é relator de uma ação que questiona o procedimento aberto no ano passado. O magistrado encaminhou a decisão para plenário.

Embora o inquérito já tenha sofrido críticas dentro do Supremo, a avaliação de quem acompanha os bastidores do tribunal é que, em meio ao acirramento das relações entre Executivo e Judiciário, há uma tendência de os ministros se unirem em defesa da continuidade das investigações.

“São poucos os ministros que vão criticar Alexandre de Moraes”, observa Débora Santos. “O Supremo vai tentar maturar o assunto nos próximos dias. A tendência é escolher o momento político para o plenário conversar sobre isso e de lá sair uma decisão no sentido de identificar arestas que precisam ser resolvidas. Mas ninguém vai dizer que o inquérito é natimorto”.

“Hoje, esse inquérito é uma expressão de poder do Supremo. O STF chegou a um momento em que está atacado como nunca foi”, argumenta.

2) Interferência na Polícia Federal

Desde que foi aberto, o inquérito já ouviu o ex-ministro Sérgio Moro e testemunhas como os ministros Augusto Heleno (GSI), Walter Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo).

Além de nomes como o ex-diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, o diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), Alexandre Ramagem − que chegou a ser indicado para o comando da corporação, mas teve seu nome barrado por decisão liminar do ministro Alexandre de Moraes, do STF − e a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP).

Foram colhidas provas como conversas telefônicas e o próprio vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, que foi tornada pública pelo ministro Celso de Mello, relator do inquérito no STF, na semana passada.

No encontro, Bolsonaro diz: “Mas é a putaria o tempo todo pra me atingir, mexendo com a minha família. Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro, oficialmente, e não consegui! E isso acabou. Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra brincadeira”.

Em outro trecho, o presidente diz: “Eu tenho o poder e vou interferir em todos os ministérios, sem exceção. Nos bancos, eu falo com o Paulo Guedes, se tiver que interferir. Nunca tive problema com ele, zero problema com Paulo Guedes. Agora os demais, vou! Eu não posso ser surpreendido com notícias. Pô, eu tenho a PF que não me dá informações”.

Esperava-se que este fosse um ponto alto do processo investigativo, mas juristas acreditam que não há nenhuma prova cabal de interferência de Bolsonaro na PF nesta gravação. A dúvida fica com quais serão os próximos passos do inquérito a partir de agora.

“O inquérito que tramita perante o STF, que investiga suposta ingerência do presidente na PF, encontra-se em fase instrutória – ou seja, é o momento da obtenção de provas testemunhais, de cumprimento de mandados de busca e apreensão, juntada de documentos, produção de eventual prova pericial”, explica a advogada Fátima Miranda, especialista em direito público.

Recentemente, a Polícia Federal determinou que o ministro Augusto Heleno apresente todos os documentos que comprovem uma insatisfação do presidente Jair Bolsonaro com sua segurança pessoal no Rio de Janeiro – narrativa do governo sobre o episódio mencionado na gravação.

Os investigadores solicitaram ao STF, na última sexta-feira (29), uma prorrogação de 30 dias para concluir o inquérito. Celso de Mello pediu que o procurador-geral da República, Augusto Aras, se manifeste.

“É difícil entender um cenário mais macro [para as investigações], porque não haverá a prova definitiva. O que eles vão precisar fazer é compor esse mosaico de elementos que indicam em uma mesma direção e, a partir disso, tirar conclusões”, diz o advogado criminalista Conrado Gontijo, sócio do escritório Corrêa Gontijo Sociedade de Advogados.

“Já há alguns elementos muito graves que dão alguma consistência à declaração de Moro, embora o vídeo não seja aquilo que ele indicou que seria. Não é uma prova tão objetiva e clara”, avalia.

A avaliação de especialistas é que um novo caminho para as investigações pode ter sido aberto pelo empresário Paulo Marinho, ex-aliado do bolsonarismo, que prestou três depoimentos e entregou seu aparelho celular para perícia.

Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o executivo afirmou que o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) teve acesso antecipado a informações da operação Furna da Onça, que teve como um dos alvos Fabrício Queiroz, seu ex-assessor na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro).

Segundo Marinho, a deflagração da ação chegou a ser adiada para que não houvesse prejuízo à campanha do então candidato à presidência Jair Bolsonaro. O empresário dá detalhes sobre como se deu o contato entre aliados de Flávio e um delegado. E ainda cita um antigo celular do ex-ministro Gustavo Bebianno, morto por infarto em março, como prova no inquérito.

“A grande peça para o futuro da investigação pode ser o depoimento de Paulo Marinho. O que ele trouxer de informação para o inquérito pode abrir novas frentes de investigação ou reforçar a investigação que já vinha sendo feita a partir do vídeo, dos relatos e do celular do ex-ministro Sérgio Moro”, observa Débora Santos.

Para Gontijo, um caminho possível para o inquérito seria o da quebra do sigilo dos aparelhos celulares dos investigados e a solicitação para que as companhias de telefonia informem sobre o local em que cada um esteve em datas de encontros informadas por Marinho.

Na semana passada, PDT, PSB e PV solicitaram ao STF a apreensão do celular do presidente Jair Bolsonaro e do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do mandatário. O pedido foi encaminhado à PGR, que se manifestou contrária. Em parecer enviado à Corte, Augusto Aras argumentou não haver legitimidade de terceiros para “postulação de medidas apuratórias” no caso.

Por ter tido amplo acesso à campanha presidencial de Bolsonaro, há especulações de que Paulo Marinho, inclusive, possa apresentar indícios vinculados a outras investigações em curso. Neste caso, seria aberta uma possibilidade de compartilhamento de material com outros processos.

Outro ponto esperado para as investigações é um depoimento de Bolsonaro. Conforme noticia o site G1, a Polícia Federal afirmou, em documento enviado ao STF, que “para a adequada instrução das investigações, mostra-se necessária a realização da oitiva do presidente a respeito dos fatos apurados”.

No documento, a PF também informou, ao pedir a prorrogação do inquérito, que ainda estão pendentes as seguintes diligências:

1) “Exame de edições dos arquivos do vídeo da reunião ministerial, a análise das mensagens do telefone celular de Sérgio Moro”;

2) “Resposta da Dicor [Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado] sobre o pedido de informações acerca da produtividade da SR/RJ [Superintendência da PF no Rio de Janeiro]”;

3) “Resposta do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional [Augusto Heleno] quanto ao pedido de dados a respeito das trocas de comando da chefia da segurança do presidente da República”;

4) “Recebimento das cópias dos inquéritos já indicados com trâmite perante a RJ/RJ”;

5) “Análise das informações, assim como das oitivas de Paulo Roberto Franco Marinho [empresário; suplente do senador Flávio Bolsonaro], Miguel Ângelo Braga Grillo [chefe de gabinete do senador Flávio Bolsonaro]”;

Passada a etapa de coleta de provas e depoimentos, caberá ao procurador-geral Augusto Aras decidir se apresenta ou não uma denúncia contra Bolsonaro – o que, caso aceito pelo plenário da Câmara dos Deputados e o pleno do STF, daria inicio a um longo processo que poderia culminar no afastamento do presidente.

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