Argentina deve fechar acordo com credores após “soft default”; relação com Brasil pode piorar
SÃO PAULO — A Argentina não pagou juros sobre três bônus soberanos dentro do período de carência de 30 dias, que venceu na última sexta-feira, dia 22 de maio. O não pagamento já foi considerado default (calote) pela agência de classificação de risco Fitch, que cortou ontem o rating do país de C para RD (default restrito).
Mas a decisão do governo do país vizinho tem sido chamada de “soft default”, já que o presidente Alberto Fernández e sua equipe econômica continuam a negociar com credores uma reestruturação abrangente de seus bônus regidos sob lei estrangeira.
Os credores privados rejeitaram a oferta inicial feita pelas autoridades em 16 de abril e já entregaram contrapropostas. O governo estendeu o prazo da negociação até 2 de junho.
A equipe de Fernández tem pedido um alívio nos juros, o não pagamento das obrigações por três anos e a redução do principal da dívida em 5% — este último ponto é apontado por especialistas como o maior gerador de entrave entre os dois lados.
É uma corrida contra o tempo, já que ontem, no primeiro dia útil depois do anúncio de não pagamento, foi protocolado o documento chamado por lá de “consulta”. É a burocracia necessária para que seja pago o seguro contra calote, o CDS, para quem comprou esse título.
A abertura do pedido foi anônima, segundo o jornal Clarín, mas só pode ter sido feita por um dos membros de um comitê de 14 bancos e fundos, que fazem parte de uma organização chamada International Swaps and Derivatives Association (ISDA), que regula esse mercado.
Os membros do comitê são: Bank of America, Barclays, BNP Paribas, Citibank, Credit Suisse, Deutsche Bank, Goldman Sachs, JPMorgan, Mizuho Securities, AllianceBernstein, Elliott Management, Citadel, PIMCO e Cyrus Capital.
Houve uma tentativa sem sucesso de pedir o resgate do seguro em março, quando o ministro da Economia Martín Guzmán deu a primeira declaração de que a Argentina não conseguiria honrar o pagamento dos juros dos bônus por causa da crise gerada pelo coronavírus — que agravou a situação econômica já complicada que o país vem vivendo há anos. Segundo a publicação argentina, há cerca de US$ 1,2 bilhão em jogo.
O pedido de resgate do CDS não impede que o governo argentino continue negociando com seus credores para chegar a um acordo dentro do prazo estabelecido por ele mesmo. Pelo contrário, adiciona uma pressão extra para que esse acordo de fato seja alcançado.
Especialistas ouvidos pelo InfoMoney foram unânimes ao dizer que acreditam que o governo argentino vai fazer o que for preciso para chegar a um entendimento com seus credores, já que um novo default para o país seria devastador.
Para Eirini Tsekeridou, analista do Julius Baer, a continuação das discussões entre o governo argentino e seus credores “é um passo na direção correta”. “Espero que os dois lados cedam em suas exigências para chegarem a um acordo nas próximas semanas”, disse.
Na visão de Tomás Arias, analista da XP Política em Buenos Aires, a crise do coronavírus, apesar de toda a tragédia humana incalculável, acaba ajudando o governo argentino na negociação.
“Os credores internacionais sabem que o mundo está sofrendo. Desta vez, não é apenas a Argentina. Num cenário como esse, é melhor aceitar receber menos e em mais tempo do que simplesmente correr o risco de ficar sem nada”, disse.
Existe a possibilidade de a equipe econômica de Fernández abrir mão da redução de 5% do principal da dívida só para que os credores aceitem as demais condições de sua proposta, mas em princípio o governo argentino deve manter sua posição até o final.
“É melhor um acordo ruim do que acordo nenhum”, afirmou. “Com default, a Argentina zera suas já pequenas chances de conseguir financiamento externo mesmo que caro, seria o pior cenário para o país e prefiro não considerar isso, por enquanto.”
Arias destacou que, hoje, o governo tem apoio do Congresso, da oposição, dos prefeitos e governadores e, principalmente, da população para que ele chegue a um acordo com os credores e evite um novo calote da dívida externa do país.
“A popularidade de Alberto Fernández está entre 70% e 80%. Ele fechou o país muito rapidamente quando os primeiros casos de coronavírus chegaram para evitar o colapso que já tinha sido visto em países da Europa, e continua mantendo o isolamento da população. Isso foi bem aceito pelas pessoas”, disse.
“O problema é que se passaram mais de dois meses e a classe média alta já está cansada de ficar em casa. O vírus está começando a atingir favelas, e o contágio está crescendo. Será que Fernández vai manter a popularidade depois que tudo isso passar? É preciso lembrar que a oposição, que agora está trabalhando junto com o governo por um motivo maior, voltará a atacá-lo lá na frente. Um default agravaria o cenário, por isso não é uma opção”, concluiu.
Relação Brasil x Argentina
Diante da possibilidade concreta de mais um calote, a relação entre Brasil e Argentina pode piorar. A avaliação é de Arias e também de Paula Vedoveli, professora na Escola de Relações Internacionais da FGV (Fundação Getulio Vargas). Segundo Paula, o Brasil e os demais países da região poderiam ser prejudicados por um possível novo default da Argentina pelo “risco de contágio”.
“Quando um país da América do Sul dá calote, os credores internacionais ficam mais seletivos para emprestar para os mercados emergentes como um todo. Isso afeta negativamente quem poderá precisar de ajuda financeira, especialmente no contexto da crise do coronavírus”, disse.
“A Argentina está numa trajetória bem distinta do Brasil. O Brasil sempre foi considerado um bom pagador perante os credores externos, enquanto a Argentina já no século XIX teve problemas com suas contas”, continuou.
Para a professora, o risco político no Brasil aumentou muito recentemente. “O Brasil está cada vez mais conhecido lá fora como o país que não está conseguindo lidar com o coronavírus, e tem outras questões políticas que também afastam o investidor estrangeiro daqui.”
“Desde antes do início da crise do coronavírus, a gente já via um movimento de saída de recursos de estrangeiros por aqui [motivado por fatores como a queda nos juros, por exemplo], e isso pode piorar”, afirmou.
Paula defendeu ainda que a relação comercial entre Argentina e Brasil também pode sofrer em caso de default no país vizinho. “Basta lembrar da posição recente da Argentina no Mercosul, que colocou em stand by suas negociações pelo bloco com outros países”, disse.
“O governo argentino está indo no caminho de cada vez mais adotar medidas protecionistas e se fechar. Ele quer estreitar a relação com a China, e menos com o Mercosul”, continuou a professora. “Caso haja um default, isso pode estimular o protecionismo argentino para reduzir o impacto distributivo em termos de setores na economia.”
“No caso do Brasil, o presidente Bolsonaro já tinha deixado claro o não apoio ao governo de Fernández na Argentina. Com uma piora no quadro por lá, ele vai calcular o quanto que tornar o governo argentino um inimigo do Brasil será útil para mobilizar a sua base de eleitores e apoiadores”, concluiu Paula.
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